rinojaneiro

 


Em meio ao surto aterrador de intolerância e de fanatismo que se espalha pelo país, em busca de um ponto de apoio que me ajude a pensar e a resistir, ocorre-me reler O rinoceronte, a mais importante peça teatral do romeno Eugène Ionesco (1909-1994), publicada no distante ano de 1950. Apesar do tempo, o paralelo com nossos dias é espantoso. Tento resumir, mais uma vez, o que não se pode resumir. Uma estranha epidemia se espalha por uma vila francesa. Sem que se saiba por quê, e pouco a pouco, todos os moradores se transformam em rinocerontes. Seus espíritos se enrijecem. Suas mentes cristalizam. O fanatismo moral e religioso desfigura seus espíritos. Ataca sua capacidade de pensar. Ele as embrutece e desumaniza – e é justamente por isso que, na pequena vila de Ionesco, todos se transformam em feras.

Não foi por acaso que Eugene Ionesco escolheu os rinocerontes como metáfora para a intolerância e o embrutecimento. Com seu corpo maciço, cabeça imensa (onde se aloja, porém, um cérebro muito pequeno) e grossos cascos sob as patas, eles ilustram muito bem o que acontece com nossas mentes quando perdemos a liberdade interior. Entre os mamíferos, os rinocerontes são os únicos que transpiram sangue. Apesar de herbívoros, seu corpo ferve. Agora eles nos servem como um espelho devastador. É terrível, mas é simples: contaminados pela intolerância, nós nos transformamos em bestas, em feras; abandonamos o humano e entramos na esfera do inumano. Perdemos o respeito pelos outros. No lugar da generosidade, instala-se a atração pela crueldade. Passamos a sentir prazer em torturar e desmoralizar nossos inimigos. A comunicação é substituída pela delação. Um grosso casco de hostilidade recobre nosso corpo. Só nos falta o chifre imenso que, nos rinocerontes, ocupa o lugar do nariz.

Volto à peça de Ionesco. Em particular, ao terceiro e último ato. Bérenger, o protagonista, resiste praticamente sozinho à epidemia. Não cede: luta para manter a postura vertical e sustentar seus sentimentos humanos – para não embrutecer. Um amigo, Dudard, resume tudo em uma breve confissão: “Tenho medo de vir a ser outro”. Pois é nisso que o fanatismo nos transforma: em sujeitos irreconhecíveis, em homens fora de si. Dudard ainda tenta se consolar, agarrando-se à ideia de que a epidemia é passageira, e restrita a um pequeno grupo de pessoas. Tenta animar Bérenger: “Por que você há de se preocupar por causa de alguns casos de rinoceronte?” Como no Brasil de hoje, porém, o surto de ódio se alastra e a contaminação parece incontrolável. Estamos todos expostos ao vírus das bestas.

Mais sensato que o amigo, Bérenger compreende que a epidemia é causada pela raiva e pelo ressentimento. Que, apesar de animalesca, ela guarda fundamentos humanos. Diz a Dudard: “Não se deve ficar com raiva, porque isso pode levar muito longe. Faço tudo para não ter raiva”. Contudo, o rancor é um sentimento humano, que não podemos simplesmente anular. Não é por acaso que a palavra, raiva, serve também para definir uma doença infecciosa transmitida por um vírus através da mordida de animais. A questão, então, é saber que destino lhe dar, em que transformá-la, como dominá-la para que ela, ao contrário, não nos domine. Num Brasil devastado pelo ódio – basta entrar numa página qualquer do Facebook para constatar isso –, resta-nos descobrir o que fazer desse ódio, como usá-lo positivamente, antes que ele nos bestialize. Resta transformar o ódio em luta.

Bérenger pensa em pedir ajuda a seu chefe, o senhor Papillon, mas Dudard, muito constrangido, lhe diz que o chefe pediu demissão e se mudou para o campo. “Para não fazer segredo... ele virou um rinoceronte”, completa. Perplexo, Bérenger ainda tenta proteger o senhor Papillon e argumenta: “Ele não fez de propósito. Estou certo de que se trata de uma mudança involuntária”. Despreza, assim, o poder demente da imobilidade e da apatia, que hoje, do mesmo modo, se alastram por nosso país. Não fazer nada, cruzar os braços e simplesmente esperar, pode ser também uma forma de enlouquecer. Que outra coisa, senão a apatia mórbida, – num país golpeado, e que se desmonta – vemos, hoje, ao nosso redor?

Desanimado, Bérenger pensa em procurar O Lógico, um amigo que é filósofo. Quem sabe a filosofia pode nos salvar? Quem sabe – ele se consola inutilmente - a salvação estará no campo das ideias? Sempre agarrado a seus pensamentos, Bérenger supõe, o Lógico deve ter resistido e poderá ajudá-lo em sua luta. Logo depois, porém, avista um rinoceronte que passa com uma palheta encravada em seu chifre. Atônito, ele grita: “O Lógico virou rinoceronte”. O cerco se aperta, está cada vez mais difícil fugir. Daisy, uma colega de trabalho que vem visitá-lo, tomada por um pensamento terrível, especula: “Talvez os anormais sejamos nós”. Em nossos tempos perversos, não se guiar pelo ódio, não submeter-se ao irracional, de fato, começa a parecer anormal. São poucos os que resistem à epidemia; e as minorais são sempre vistas não só com suspeitas, mas perigosas.

Quanto mais a peste se espalha, mais toma uma aparência natural. Esse é o risco que corremos hoje: na contramão da história, podemos parecer apáticos e até doentes. Não é por outro motivo, por exemplo, que muitos “especialistas”, com a boca cheia de ódio, chamam os militantes de esquerda de “esquerdopatas”. Ressurge a estratégia de “adoecer” o diferente para dele se livrar. Para anulá-lo. O natural, parece, é se submeter. Apesar de resistir, Bérenger, em alguns momentos, começa até a admirar os barridos dos rinocerontes. Chega a dizer: “Há um certo atrativo no canto deles, um pouco rude, mas mesmo assim é atraente”.

Apesar desses assédios, Bérenger não desiste. Sua última fala, no fecho da peça, é: “Sou o último homem, hei de sê-lo até o fim! Não me rendo!” A resistência, de fato, se tornou a única atitude digna. Aqui me lembro da figura firme de Arthuir Bispo do Rosário, negro, pobre e nordestino que, apesar de tudo, e mesmo atrás das grades, se tornou um dos maiores artistas brasileiros. A chave está aí: resistência. É o que precisamos fazer para não correr o risco de, amanhã, ao nos olhar no espelho, deparar com um rinoceronte.