A literatura nos ajuda a ampliar os limites de nossa percepção. A literatura nos ajuda, sim, a viver. Tanto que, com frequência, e sempre perplexos, constatamos que a leitura de um livro não só nos agradou, mas nos modificou. Não temos uma explicação muito clara para o que aconteceu. Sabemos, apenas, que aconteceu, e por isso muitos leitores atribuem à ficção um caráter se não mágico, pelo menos místico.
Um movimento secreto, e inacessível, nos agita enquanto lemos. Algo se passa em nosso interior que não conseguimos nomear. Por isso mesmo, há uma mística em torno da figura e da ficção de Clarice Lispector, fervor irracional que se origina no modo como seus escritos desvelam e revolvem o desconhecido. Como eles desmascaram nossas mais firmes convicções. No caso de Clarice, a mística (o êxtase) vem do susto.
Um exemplo gritante aparece em Quase, crônica que Clarice Lispector publicou no dia 18 de janeiro de 1969, no Jornal do Brasil – guardada em A descoberta do mundo (Rocco). Nem por isso, o leitor deve imaginar um relato complexo, ou uma escrita para especialistas. Trata-se, ao contrário, da narrativa de uma experiência simples, corriqueira, como quase sempre acontece na crônica. Relata Clarice – a narrativa está na primeira pessoa, o que induz o leitor a acreditar que ela própria viveu o que narra – uma experiência banal, apesar de um pouco opressiva, que, a princípio, mal sustentaria uma história. É a partir de quase nada, porém, que Clarice escreve.
Uma mulher, Clarice Lispector, ou seja quem for, está em um táxi, no Rio de Janeiro, a caminho de sua casa na Praia do Leme. O táxi se aproxima do Túnel Novo, porta de acesso à Copacabana. Distraída, sem pensar no que pensa, a mulher avista de repente a Igreja de Santa Teresinha, que de fato se ergue à entrada do túnel. Tudo leva o leitor a crer que está diante do relato de uma experiência. Como sempre acontece nas narrativas de Clarice, o impulso – assim como o acaso – tem um papel decisivo. “Meu coração bateu mais forte: (...) reconheci que seria na igreja que eu poderia encontrar refúgio.” A fuga, quase sempre acompanhada do pânico, é um elemento crucial em sua escrita. A fuga e seu contrário, o desejo aflitivo de encontrar.
Dispensa o táxi e, sem saber o que procura (ignorância), entra na igreja, que àquela hora está vazia. A atmosfera sombria, sem que ela possa entender por quê, logo a transfigura. “Pouco a pouco meu mundo interior foi se transformando numa resignação melancólica: eu dava minha alma em troca de nada.” A ideia da resignação, da submissão súbita ao destino ou a alguma força externa, é significativa, pois assinala o modo como a realidade e a experiência, à nossa revelia, muitas vezes nos submetem, só nos restando aceitar. Aceitar o quê? Nossa ignorância.
A renúncia da vontade desperta, ato contínuo, a melancolia, que outra coisa não é senão o abatimento diante do real. Uma queda. O sujeito se sente massacrado por um mundo devorador. Aqui me lembro de O cão, a célebre tela de Goya, que mostra um animal muito pequeno espremido por uma vasta paisagem obscura. O minúsculo cão de Goya, inevitável pensar, “é” Clarice e todos os personagens em que ela se duplica.
“Sentia que o meu mundo havia desmoronado e que eu restara de pé como testemunha perplexa e incógnita”, continua. No escuro do templo, a mulher tem diante de si um mundo enigmático que a massacra. Abalada pelo sentimento imprevisto, confusa, ela passa a observar o interior da igreja em busca de alguma resposta. Até que vê, no meio da nave, uma imagem de Santa Teresinha, a padroeira da igreja, os pés cobertos de flores, deitada em um caixão.
O que seria banal – a imagem da santa em uma igreja que leva seu nome – lhe provoca, porém, um desconforto que não consegue nomear. A insuficiência das palavras é um tema insistente na obra de Clarice, e aqui, mais uma vez, ressurge. A imagem sagrada lhe parece estranha, porque Santa Teresinha – que morreu aos 24 anos no ano de 1897 - é, por tradição, representada jovem, enquanto a figura que tem diante de si é de uma mulher idosa. “Seus olhos estavam fechados, as mãos brancas cruzadas no peito, e as flores vivas e rubras rebentando como um grito de vida a seus pés.”
Ela se intriga, mais ainda, com o material usado pelo escultor. Não é uma imagem de porcelana, disso tem certeza. É fosca, não brilha. Do que seria feita então? Quando, curiosa, se prepara para tocar no rosto da santa na esperança de descobrir, duas moças surgem na igreja e, postando-se ao seu lado, interrompem seu gesto. Mais uma vez, o imprevisto quebra o que seria uma atitude impensada e natural. Outra vez, a própria naturalidade parece insuficiente como instrumento de acesso ao mundo e o inesperado a interrompe e a rasga.
O golpe final vem quando, inquieta, uma moça diz para a outra: “Afinal de contas, quando é que vem todo o mundo para o enterro da vovó?” Uma frase (uma pergunta sem resposta) basta para desmascarar a ilusão. Compreende, então, que não está diante de uma imagem, mas de uma morta. “Uma mulher morta que eu quase havia tocado com meus dedos.” Aquela frase a salvou de encostar a mão naquilo que está sempre a nos escapar: a morte. Como se sabe, não existem palavras que correspondam à morte; daí o silêncio, ou a profusão insana de clichês que dominam os velórios.
Mas a vida, e também a morte, estão mesmo onde não costumamos considerar. Atônita, ela se apressa a sair da igreja em busca de um táxi. “Na rua fiquei muito tempo aspirando o cheiro que estar vivo tem.” A vida está, também, na ficção, que a desvela e expõe, e a crônica de Clarice é uma prova enfática disso. A literatura nos alarma porque denuncia “o cheiro do que ainda não morreu”.
Muitos, nos dias de hoje, julgam que a literatura é letra morta, que ela serve apenas para distrair, ou para fazer dormir. Imitando um soco desferido sem aviso prévio, a escrita de Clarice Lispector, ao contrário, nos mostra que a função da literatura, se a praticamos com coragem e vigor, é a de nos despertar. Despertar para que? É na mais absoluta solidão que cada um de nós deve descobrir.