Para suportar o presente repugnante, para resistir a essa mistura de insanidade e apatia que se alastra em torno de nós, salto para dentro da literatura, que sempre me ajuda a respirar. Abrigo-me então nos Diários, de Franz Kafka, organizados por Max Brod em 1937, que já li em uma velha edição da Emecé argentina, de 1953, e que agora releio na nova edição portuguesa da Relógio D’Água, de 2014. Viajando para o século passado – os diários se iniciam em 1910 e se estendem até o ano de 1922, dois anos antes de sua morte –, reencontro Kafka em uma situação muito parecida com a que vivemos hoje. Não penso apenas nas semelhanças chocantes entre os escândalos e as delações que guiam nossa vida política e seu romance mais famoso, O processo. Vou além dos livros: penso no próprio Franz, perdido em um mundo que o massacra, um mundo que todo o tempo tenta reduzi-lo a um inseto, como descreveu em A metamorfose. Franz, um homem abatido, mas agarrado firme à sua escrita.
Sou um apreciador do silêncio. Na música, que aprendi quando menino, o que mais me surpreendia eram as pausas, isto é, as ausências absolutas de som. Dou grande valor aos suspiros, aos queixumes e aos desabafos involuntários, que quase não suportam a existência das palavras. Por isso, lendo os diários de Kafka, apego-me aos pequenos desafogos, às desopressões quase involuntárias, aos momentos breves, muito breves, em que ele apenas registra um sentimento, uma imagem, um pensamento que não se deixam, na verdade, registrar. “Ontem, incapaz de escrever uma palavra sequer. Hoje não foi melhor. Quem me salva?”, ele anota no ano de 1914. Prossegue, ainda sem compreender a si mesmo: “E não ser capaz de ver o tumulto que há no fundo de mim. Sou como uma grade viva, que está presa e quer cair”.
Assim, Kafka dá voz – tenta dar voz, luta para arrancar da escuridão – a um sentimento de absoluta opressão, um abafamento que se parece com a apatia, que a corteja e a incorpora. Quando, como nos pesadelos, queremos nos mover e não conseguimos. Quanto todo movimento se mostra insuficiente e, apesar de esgotante, inútil. Tanto que insistimos desesperados, nos mexemos, nos sacudimos, mas nada se move. Há uma paisagem mais parecida com a que vivemos hoje no Brasil? Dando um salto para trás, chegando ao ano de 1911, encontro o breve registro: “Tive um ligeiro desmaio que me deixou completamente prostrado, recompus-me e, pouco tempo depois, lembrei-me dele como de uma coisa há muito esquecida”. O real é brusco (“ligeiro”), mas avassalador (prostração). Logo conseguimos nos recuperar, mas a memória que dele guardamos se parece com o esquecimento. Logo a seguir, outro fato brutal nos atropela – e assim seguimos. O abatimento é inevitável e, mesmo assim, continuamos, precisamos seguir em frente. Kafka fala de si mesmo, ou de nós?
Agito-me sobre o diário, esperando dele arrancar alguma luz, mas tudo o que Kafka me devolve é a experiência da cegueira. Suas anotações breves se parecem com sussurros. Os murmúrios de um prisioneiro, ou de um pária, que não pode e não consegue erguer a voz, e apenas resmunga de dor. Movo-me novamente, agora para frente, e chego ao ano de 1915. Leio, claramente incomodado: “Lembrança de uma igreja em Verona onde entrei contrariado, em profundo abandono, vagamente impelido pelo dever de turista e violentamente impelido pela sensação de ser um homem que se perde na sua própria inutilidade”. Vejo Kafka: um homem que faz, mas não sabe por que faz. Um homem fora de si? Volto a pensar no desmaio das anotações de 1911: ao acaso me movo, mas tudo se conecta. Penso no abandono do inalterável Franz, preso a si mesmo e à sua grade, debatendo-se por dentro (tumulto), mas atuando mecanicamente sobre o real. Não é assim que, nos dias difíceis de hoje, tantas vezes nos vemos? Cumprimos rituais vazios – eis a verdade. Um mundo sem consequências. Um mundo obcecado (doente) pela ideia de ordem, porque a lei já não tem grande valor. Que, como Franz, busca o pai inatingível. Busca fora o que leva dentro de si.
Quero saltar de novo. Quero mover-me. O que procuro? Sigo Franz: é a própria procura que procuro, ela me basta para esquivar-me do insuportável real. Além disso, ele me tira do abandono. Ele me acompanha. “Eu o tenho”: eis um pensamento que define o leitor. Então sigo. Sigo e detenho-me em uma frase mínima, anotada em 1917. Duas palavras: “Incapacidade total”. Emudeço. Poucas páginas atrás, encontro esta outra anotação: “É a idade da ferida, mais do que a sua profundidade e proliferação, que a torna dolorosa. Lacerar uma e outra vez o mesmo canal da ferida, assistir outra vez ao tratamento da ferida inúmeras vezes operada – é isso o mais terrível”. Kafka fala da repetição, esse veneno de aparência inócua que, no entanto, mata. Penso de novo em nós mesmos e retrocedo ao tempo antigo das senzalas, dos açoites, dos capitães-do- mato a caçar escravos em emboscadas. Olho em torno: tudo parece imóvel. Tantos esforços, tanta luta e, de repente, a constatação de que nada funcionou. Rastejamos sobre a ferida aberta. A mesma ferida, que muda de aparência, que se resseca, que apodrece, mas continua a latejar. A dor está no Mesmo, que não conseguimos afastar de nosso caminho. Anota Kafka.
Chego ao ano de 1913. Continuo a procurar: Kafka me prende em sua busca. A literatura serve para isso: ela nos empurra. Agora Kafka registra seu (nosso) desamparo. Escreve: “Sinto-me mais inseguro do que nunca, sinto apenas a violência da vida. E estou absurdamente vazio”. Abandono e vazio: abandono no vazio. Busca uma metáfora (um transporte) que, levando-o para longe de si, deixe-o mais perto de si. Tenta: “Sou na verdade como uma ovelha perdida na noite e na montanha, ou, como uma ovelha que corre atrás daquela ovelha”. Atrás do pior, rasteja o “ainda pior”. Nem as palavras lhe servem para expressar algo que não se deixa expressar: “Estar tão perdido e não ter a força de lamentar”. Franz não passa de um resto. Só a escrita brilha.
De novo, a escuridão, e nem uma lanterna que o guie. Mesmo assim, Kafka prossegue, Kafka escreve. Como que desmaiado (sem sentidos), ainda assim, segue em frente. A busca se torna o próprio sentido. Penso: é assim também que precisamos seguir. A palavra-chave talvez seja: insistência. Lutar: insistir em lutar. Perguntar, insistir em perguntar. Insistir em escrever. Até que alguém enfim nos responda.