Mais importante escritor uruguaio, Juan Carlos Onetti (1909-1994) passou os últimos 12 anos de sua vida trancado em seu apartamento da Avenida América, em Madrid. No início dos anos 1990, durante uma viagem à Espanha, pensei em entrevistá-lo, mas seu editor foi franco: “Não se interessa por nada. Passa os dias na cama, virado para a parede, observando o vazio. É melhor desistir”. Fiz a besteira de aceitar sua explicação. Ainda hoje me arrependo: o silêncio, muitas vezes, é bem mais precioso que as palavras. Desde 1982, Onetti se trancara em seu apartamento espanhol, desistindo do mundo. Recebia a visita de alguns leitores, mas evitava jornalistas, e quase nunca saía da cama. Deitado, tomava seu uísque, fumava sem parar, lia sem parar também. Foi naquela cama que escreveu Quando já não importa, seu romance de despedida, de 1993.
O interesse de Onetti pelo vazio vinha de muito antes. Ainda morava no Uruguai quando, em uma entrevista, declarou: “Os fatos são sempre vazios, são recipientes que tomarão a forma do sentimento que os preencher”. No ano de 1978, comprei, na Livraria Espanhola, da Rua Senador Dantas, no centro do Rio, o romance El astillero (O estaleiro), que Onetti publicou em 1961. Um grande espaço vazio se interpôs entre mim e o livro: só agora, quase 40 anos depois, finalmente eu o li. Larsen, o protagonista, um homem que, sem nada mais esperar da vida, aceita o posto de gerente-geral de um estaleiro falido, embora criado em meados do século passado, é ainda hoje um homem exemplar. O gélido Larsen, eu descobri, é um de nós.
Minha obsessão pelas palavras me leva, primeiro, a investigar a origem de seu nome. Descubro que no mar de Weddell, na costa oeste da Antártida, existe uma imensa plataforma de gelo chamada Larsen. Seu nome é uma homenagem ao capitão Carl Anton Larsen, o primeiro a circunavegá-la, no ano de 1893. Larsen era, em sua origem, um conjunto de três plataformas. O aquecimento global levou Larsen A, a menor delas, a se desfazer em 1995. Larsen B seguiu o mesmo destino e se desintegrou no ano de 2002. Ainda inteira, a última delas, Larsen C, já apresenta, porém, uma ameaçadora rachadura em seu centro e os cientistas não fazem bons prognósticos.
O risco constante de um colapso caracteriza, em nossos tempos superaquecidos, as plataformas de gelo polar. Esses glaciares indiferentes e vazios reproduzem o miserável coração de Larsen, o personagem de Onetti, ele também fisgado pela apatia e pela indolência. Ele também, e sempre, à beira do desastre. Um homem que não consegue mais lidar com o frenesi do mundo e que, desistindo de viver, e enquanto adia a morte, se limita a representar um teatro desanimador. Essa aceitação, contudo, se parece mais com uma rendição. Ele se sente impotente para enfrentar o mundo; o presente o atordoa e enoja; sem outras armas, limita-se a representar o papel do humano, sem viver, de fato, uma vida.
A palavra que busco para Larsen, e um pouco para todos nós, talvez seja: anestesia. Sim: estamos anestesiados. Em O estaleiro, esta palavra que se alastra como um veneno, não serve apenas para Larsen. Outros personagens, como os debochados Kunz e Gálvez, que o assessoram na empresa, também a merecem. Todos eles sabem que navegam em uma nau sem rumo – e este não é um sentimento que experimentamos, nós também, a toda hora? Têm consciência de que representam seu espetáculo em vão, que ele não os levará a nada, mas seguem em frente sem nada ousar mudar. Em dado momento (estou na página 84 da edição espanhola da Seix Barral), Larsen decide visitar Gálvez. A literatura exibe, aqui, seu poder de antecipação. Também Gálvez está deitado em sua cama, indiferente ao mundo. “O homem estava virado para a parede de madeira; se ouvia respirar, era seguro que estava de olhos abertos.” Está, quem sabe, em um estado de hibernação. Prenuncia o que o próprio Onetti viveria duas décadas depois. Imita o que, mesmo de pé e produtivos, mesmo ofuscados pela busca da “adrenalina”, estamos tantas vezes a fazer.
Larsen se acomoda a seu lado – como se Onetti se sentasse ao lado de si mesmo. Trocam palavras ríspidas. “Depois ficaram em silêncio, muito tempo, imóveis, pensando na verdade.” Larsen sabe que nada mais espera de seu assessor. Que ali está só por cortesia e, para dizer mais francamente, por dissimulação. Ainda hoje, ou talvez hoje mais do que nunca, atordoados com a inclemência do real, também nós, tantas vezes, nos limitamos a dissimular. A representar nossos papéis, cientes de que eles também não passam de embalagens vazias. “Não se despediu, porque desconfiava das palavras.” Também as palavras, em nosso tempo, se tornam suspeitas. Também em nossos dias, mesmo as melhores performances escondem, tantas vezes, a hipocrisia.
Do doutor Díaz Grey, seu amigo e outro grande personagem de Onetti, o apático Larsen ouve o diagnóstico: “Não há surpresas na vida. Tudo é confirmação”. Mas não devemos, nem por isso, nos considerar monstruosos. Diante do torpor do mundo, o doutor Grey lhe dá um conselho: “Cada um de nós necessita proteger uma farsa pessoal”. Também o doutor vive entre nós: ele sabe que, na agitação inútil dos dias, só nos salva a capa da ficção. Precisamos inventar um destino, mesmo temendo que ele não venha a se confirmar. Por mais que nos esforcemos, nos mostra Grey, jogamos sempre o mesmo jogo. É muito pouco o que efetivamente podemos fazer, mas, nem por isso, devemos desistir. Por mais que tentemos assumir o comando das coisas, pensa Larsen, “o mundo continua a ser o mundo dos outros”.
A literatura de Onetti nos obriga a aceitar a apatia do mundo. Seu alheamento, sua indiferença, sua rigidez. Larsen sabe que vive em uma sociedade enregelada; que nela se espalha uma “loucura silenciosa” que debocha de nossos mínimos movimentos. É nesse cenário inóspito e imóvel, porém, nesse mundo pétreo que se assemelha às geleiras, que devemos viver. É aqui, nesse imenso glaciar, que devemos jogar nosso jogo. Até porque há sempre um momento, Larsen nos lembra, em que “o jogo se transforma no real”. Sim: ainda temos uma chance. Não é fácil ler Onetti. Ele nos confronta com o grande deserto. O mundo nos é indiferente, o mundo não quer saber de nós. Ainda assim, é nele, é só nele, que podemos continuar. É entre o gelo – é contra o gelo – que tudo se decide.