castello MAIO A

 

 

Passo alguns dias em Queenstown, na Nova Zelândia. Caminhando pelo porto, no muro que delimita o calçadão, esbarro em uma frase: “They are just the ghosts of their original selves”. A frase — que faz parte de uma longa escrita grafada na parede — me paralisa. Não avanço, não retrocedo; não me importo também em descobrir quem a assina. A frase, solta, bruta, gritante, me fisga. Ali fico, imobilizado pelas palavras.

Depois, já no hotel, me ponho a pensar. Nosso mundo tem, de fato, uma aparência fantasmática. As verdades se tornaram fluidas; as identidades, intercambiáveis; as palavras se parecem com envelopes vazios. Vivemos a era da “pós-verdade”. A verdade é cada vez mais desprezada. Como se habitássemos um castelo do terror, rastejamos entre fantasmas. Perdemos todas as garantias. Não habitamos o castelo, mas o pântano que o cerca.

O que posso fisgar através dessas palavras que as paredes de Queenstown me trouxeram? Que conexões elas podem me oferecer? “Ando perdido”, um leitor me escreveu outro dia. “Seus textos têm me ajudado a acreditar em um caminho.” Eu mesmo, porém, também procuro um caminho. Talvez o segredo esteja em compartilhar essa aflição. Em dividir o peso que nos dobra: estranha força dos fantasmas. E aqui a escrita, mais uma vez, me alimenta.

Muitas vezes, esse alimento é quase imperceptível, é secreto. No vôo entre o Chile e a Nova Zelândia, li uma antiga entrevista de Ricardo Piglia em que ele tenta descrever o ócio — segundo ele, um elemento fundamental no trabalho do escritor. O dicionário define o ócio assim: “cessação de trabalho”, “repouso”. Piglia, contudo, recorre a uma experiência pessoal muito mais direta. Certo dia, chegando à janela de seu apartamento, observou, na sala em frente, uma mulher que tentava pregar alguma coisa na parede. Ela tentava, tentava, mas simplesmente não conseguia. Distraído, Piglia se deixou ficar em sua janela, imóvel e discreto, observando a luta da mulher até que ela, exausta, desistiu de pregar o objeto e saiu de seu campo de visão.

Aquele momento de repouso, aparentemente banal, foi, porém, decisivo para o escritor argentino. É desses intervalos — é neles — que nos desgrudamos dos fantasmas que o cotidiano cola em nós e nos aproximamos, como diz o muro de Queenstown, de nosso “verdadeiro self”, isto é, de nosso “si mesmo”. Hoje, talvez mais do que nunca, agimos cegamente. Estamos amordaçados a agendas, a relatórios, a desempenhos, a papéis sociais, a expectativas alheias. Há uma gritaria no ar, que emerge das manchetes escandalosas da imprensa. Perdemos o fio que nos liga a nós mesmos. E essa conexão só é refeita quando conseguimos, enfim, parar.

Na correria, arrastados pela coleira do cotidiano, perdemos contato com o “si mesmo”, enquanto os fantasmas nos mastigam. Vivemos um pouco como Rouzinski, o falso pintor inventado pelo escritor inglês William Beckford que misturava a leitura de tratados de pintura com tratados de anatomia, perdendo-se assim numa visão despedaçada do real. Tinha uma aparência estranha e o chamavam de Anticristo. Sua obsessão pela anatomia emprestou a Rouzinski a alcunha de “pintor açougueiro”. Retalhava o corpo humano como se ele fosse uma peça de picanha, ou uma costela. Só enxergava as partes — as sombras do fantasma e suas garras; o todo (o real) sempre lhe fugia.

A partir desse retalhamento, o falso pintor descobria uma nova artéria, ou um tendão desconhecido. “Em suas caminhadas”, relata Beckford, o torturado Rouzinski “nunca estava sem uma perna, ou um braço, que ia fatiando”. Era um ladrão de corpos, que frequentava os cemitérios durante as madrugadas. “Suas pinturas continuam a horrorizar os que têm coração delicado”, comenta Beckford. Sua figura, contudo, antecipa, em três séculos, nossa penosa realidade do século XXI. Uma realidade rasgada, esfarrapada, na qual as partes não se encaixam, na qual faltam sempre pedaços sem os quais nunca chegamos a um corpo inteiro. Esses fragmentos dispersos compõem a fantasmagoria de nosso tempo. E entre eles, cambaleantes, avançamos.

Daí a necessidade de imitar Piglia e simplesmente parar. Deter-se diante de uma janela aberta, de um jardim, de uma rua, de um céu estrelado. Parar e olhar, nada mais que isso. Estabelecer laços, perseguir conexões, estender a mão, em vez de fatiar e destruir mais ainda. Livrar-se do fantasma e de seus dentes invisíveis para, enfim, chega àquilo que apenas é.

Em vez de fragmentar — fracionar, quebrar —, em vez de imitar o carniceiro, somar. Em certo trecho de O mal-estar na civilização, Freud nos fala exatamente disso. Transcrevo aqui a tradução de Paulo César de Souza: “É hora de voltarmos para a essência dessa civilização, cujo valor para a felicidade é posto em dúvida. Não vamos requerer uma fórmula que expresse tal essência em poucas palavras, antes mesmo que nossa investigação nos ensine algo. Basta-nos então repetir que a palavra ‘civilização’ representa a inteira soma das realizações e instituições que afastam nossa vida daquele de nossos antepassados animais”. A palavra-chave aqui é: soma. Ao contrário do açougueiro de Beckford, resta-nos, ainda que a duras penas, aprender a somar.

Ainda recolhido em meu hotel neozelandês, navego pela internet. Busco algo que me puxe para o chão, busco um laço. No site O percevejo, da pós-graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, como se não estivesse mais em Queenstown, encontro uma entrevista do diretor de teatro Amir Haddad que evoca uma lembrança antiga. O dia em que, perplexo, assisti no Rio de Janeiro a uma montagem de seu Somma ou Os melhores anos de nossas vidas. Um espetáculo que me reanimou — como alguém que emerge de uma longa letargia. Diz Amir, em sua entrevista: “Então, todo o grande que está na rua é a soma de todos os pequenos”. Só a soma “dá corpo” e esmaga o fantasma.

Encontro, assim, outra maneira de desmontar o espectro — o vazio absoluto — em que a vida se transformou: experimentar novas costuras, arriscar um caminho pessoal. Penso novamente na internet, que está cheia de fantasmas, cheia de gritos estridentes, cheia de ódio. Basta ler os comentários a qualquer notícia que logo afundamos no lodo da raiva. Como enfrentar tanta destruição? Talvez, imitando Piglia e simplesmente parando um pouco. Depois, no colo do silêncio, pôr-se a costurar. O todo, na verdade, não existe. A soma é um caminho interminável, é o próprio movimento da vida.

Só a soma pode arrancar, do nefasto fantasma, o verdadeiro self. Só ela devolve um homem a si mesmo. Mais tarde, caminhando de novo pelo porto de Queenstown, lembro-me de um trecho dos diários de Caio Fernando Abreu que, nos momentos de horror, sempre me volta: “Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro”.