Acordo, aflito, às três e meia da manhã. Nenhum pesadelo. Nenhum sono. A cama me incomoda, mas a escuridão também. Penso em me levantar, ir até o escritório, continuar a leitura dos contos de Turguêniev, que tanto me espantam, mas lembro que no dia seguinte devo estar de pé bem cedo. Decido então me dedicar à pior das lutas: contra a insônia. Os minutos passam. Uma hora, duas horas. Até que me lembro, de repente, da Topografia da insônia, de Aníbal Machado.
Cinquenta e dois anos depois de sua morte, ocorrida às vésperas do golpe de 1964, quem se lembra de Aníbal Machado? Posso desdobrar a pergunta: cinquenta anos depois do golpe, que memórias verdadeiras dele traziam os que apoiaram, em 2016, um segundo golpe? Mas não é a memória que me deixa aflito, tampouco a história recente. É a insônia e apenas ela – tento me convencer. Levanto-me, vou até a biblioteca e procuro a Topografia, de Aníbal. Depois de muito procurar, esbarro enfim nos Cadernos de João. Para minha surpresa – a memória falha outra vez -, lá está, a partir da página 118, o texto que busco. Tento ativar a memória e localizar a data de nascimento do escritor. Ainda com a mente vazia, e ainda movido pelo torpor da insônia, vou até a orelha do livro. A memória me prega, mais uma vez, uma peça: sou eu mesmo o autor da orelha, uma encomenda da José Olympio, que recebi no ano de 2001.
Agora é que não vou dormir mesmo. Ponho-me, então, a ler a Topografia de Aníbal. Os cadernos que a guardam datam do ano de 1957. Em 1957, eu tinha seis anos de idade e ainda não sabia quem era Aníbal Machado. Mas que importa tudo isso? A insônia é enganadora: ela finge que nos empurra para uma direção, mas empurra para outra. Não se deve confiar na insônia, tampouco nos insones. Anota Aníbal: “Quando chegamos a perceber que são as mesmas coisas que se repetem, fingindo de novas – já a insônia está lavrando pelos pontos mais protegidos e em toda a extensão de nosso ser”. Sim: a insônia é uma espécie de iluminação atordoante. O mundo se desmascara, mas, com a cara limpa, com os olhos bem abertos, já não é possível dormir. Resta ler. Devia ter voltado ao meu Turguêniev, mas agora é tarde.
A insônia, me alerta ainda Aníbal, não é o único mal. Ou talvez nem seja o mal pior. Ele escreve: “Parece que dormi. Mas foi um sono falso, de imitação: a prova é que tudo que existe de pior no estado de vigília aproveitou também a Ambulância da Noite e embarcou comigo”. Penso no mundo destroçado em que vivo. Mundo dominado (cego) pelos excessos. Saturado e insustentável. Mundo dos escândalos, da violência gratuita, do desperdício e da intolerância. Não toleramos mais o real. Quando enfim vamos para a cama, na esperança de deixar tudo para trás e descansar um pouco, esse mundo congestionado de eventos, porém, não desgruda de nós, transformando nosso sono noturno em um prolongamento do dia infernal. Um dia que nunca termina. Uma noite – insônia – que nunca termina também. Nem a literatura pode nos consolar.
Continua Aníbal em sua perseguição da insônia: “Um alargamento monstruoso e uma proliferação infinita de coisas insignificantes”, descreve. Na insônia, as pequenas luzes, os mínimos movimentos, os ruídos imperceptíveis, tudo se agiganta. Tudo se torna maior, muito maior, do que é. Mas penso: não é assim também em nosso mundo real – um mundo insone -, em que perdemos quase completamente a noção de valor? Tudo se iguala – tudo é possível. Somos obrigados a engolir os piores horrores como se fossem eventos banais. A banalidade se torna nossa companheira. À noite, temos a esperança de um descanso, mas a insônia traz tudo de volta.
Se eu pudesse relaxar, se eu pudesse aproveitar a noite profunda. Mas não posso. Mesmo o ensaio de Aníbal eu leio aos trancos, com certa indisposição, certa repulsa, como se ele também fizesse parte do pesadelo. A madrugada transforma a perspectiva das coisas. Embaralha seus nomes, ilude nossos sentidos. Escreve Aníbal, cheio de esperança: “Tudo afinal caminha para o sono. O sono é a grande perfeição”. O sono nos traz a falsa garantia de que tudo é falso. Sonhos, pesadelos, devaneios, tudo isso, ao acordarmos, irá se apagar. Mas irá mesmo? Já na insônia, ao contrário, que arrasta a sombra dos vampiros, as coisas nunca terminam. “A questão é que não acaba nunca de desenrolar-se essa película interminável, como o negativo de todas as imagens do dia”. Ali nos defrontamos com uma insuportável síntese do dia. Avanço mais um pouco: com uma síntese do real. Uma espécie atordoante de grande resumo. É a visão de todas essas peças juntas e combinadas que se torna difícil de aguentar. A insônia é obscena: ela expõe nossos piores segredos e não há para onde fugir. Escreve Aníbal, em um esforço para se livrar dos pensamentos noturnos: “Vou mudar-me para os pés: de lá será mais fácil fugir”.
Associamos, sempre, a insônia ao sono, mas Aníbal Machado desfaz esse elo. “A insônia não é propriamente a impossibilidade de dormir”, ele nos alerta. “A insônia é uma entidade viva, megera impostora, filha perversa da ausência de sono”. Trata-se de um estado autônomo, que não relaciona com nada que julgávamos conhecer, e por isso ele se torna assombroso. Se nela o sono está ausente, o que o substitui? Volto a Aníbal: “A verdadeira insônia é uma presença de fundo sádicodemoníaco; o corpo invadido pelo espírito diabólico, para os jogos e as combinações mais imprevistas”. É provavelmente uma insônia coletiva que hoje vivemos no Brasil. Nossas esperanças se quebram como vasos de segunda classe. O imprevisto – imitando um crupiê demente – embaralha as regras que conhecíamos e oferece as soluções mais insensatas. Sem a democracia, o que se perde é o sentido.
Volto ao ponto de que tentei fugir: é o Brasil, sim, que me deixa insone. Só a mim? Outro dia, um amigo me ligou para desabafar. Sempre teve um sono excelente, sereno e profundo, mas ultimamente deu para ter pesadelos incompreensíveis. “Melhor ficar com seus pesadelos”, eu o aconselhei. “Eles são menos malignos do que o atordoamento que o real nos impõe.” Admitiu que tentava estancar os sonhos malignos levantado-se e indo até a cozinha para mastigar uma maçã. “Mas você tem razão”, me disse. “É ainda pior”. Talvez seja a hora adequada de nos acostumarmos com nossos fantasmas domésticos. Eles são incômodos, mas, como cãezinhos raivosos, sempre podem ser postos para dormir. Já o real, quem pode controlá-lo? Insones, vagamos pelo mundo já sem ter a certeza de um caminho.