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Em uma mesma noite de novembro, estranha noite, eu tive quatro sonhos, ou pelo menos me recordo de quatro sonhos que tive. Quatro sonhos que são a reescrita obsessiva de um mesmo tema – a ignorância. No primeiro deles, sou chamado para substituir um autor de telenovelas que se adoentou. Tudo o que tenho a fazer é escrever o último capítulo do programa. No penúltimo, houve um assassinato e o esperado agora é que, no fecho da história, revele-se a identidade do assassino.

Meu problema é que isso é tudo o que sei. Não assistia à novela. Desconheço seu enredo. Ignoro quem são os personagens e também como se deu o crime que agora preciso solucionar. A hora da novela se aproxima – ela não é gravada, mas encenada ao vivo. Tenho poucas horas para entregar meu original, ainda há tempo para que os atores o estudem e decorem. Entro em pânico. Ninguém se oferece para me ajudar. Busco, enfim, o socorro de um grande amigo jornalista, mas ele é duro comigo: “Isso é coisa que você deve resolver sozinho”. Em desespero, acordo.Vou até a cozinha, esquento uma xícara de chá. Passo a refletir sobre o peso da ignorância – mas também sobre seu importante papel criativo. Se nada sei, posso tudo, tento me consolar. Dias antes, li um breve texto escrito por meu irmão Marcos a respeito da memória. Ou mais exatamente: a respeito da ausência da memória. Meu irmão não é médico, mas engenheiro. Embora seja cinco anos mais novo que eu, sofre do mesmo mal que me atormenta: o pavor da falta de memória. Nossa mãe faleceu com Parkinson. Em seus últimos tempos, não sabia ao certo nem mesmo quem era. Um fantasma ancestral nos ronda.

Contudo, segundo meu irmão – desconheço os caminhos que trilhou para chegar a essa conclusão –, a falta de memória não é uma desvantagem, mas uma vantagem. Pessoas que têm memória prodigiosa teriam, na verdade, uma memória obstruída. É preciso esquecer, é preciso livrar-se da sobrecarga de informações para que frestas se abram na mente e a criatividade possa, enfim, emergir. Não ter boa memória seria então uma condição para uma mente criativa. A tese, evidentemente, me alivia. Diante da xícara de chá, em plena noite, concluo que a ignorância que experimentei no sonho não era, na verdade, um obstáculo, mas uma condição para uma invenção. Restava ter a coragem de inventar.

Volto a me deitar. O segundo sonho é um sonho que se repete, insistente, há muitos anos. Sou ator. Preparo-me para entrar em cena. Só depois que termino minha maquiagem, me dou conta: desconheço a peça que vou encenar. Alguém me sopra o título – que esqueci. É uma peça que desconheço. Toca, então, o terceiro sinal. As cortinas se abrem. Estou em cena, entre outros atores, e devo começar a recitar um texto que não sei qual é. Ainda não é minha vez de falar, mas ela logo chegará. Sinto-me mal. Não suporto o peso da ignorância. Desmaio – e acordo.

Dessa vez, não vou para a cozinha, mas venho para meu escritório. Ligo o computador, acesso ao acaso alguns sites de política. Tento me distrair com as notícias e comentários que tratam de nosso sombrio mundo objetivo. Mas, na verdade, o sonho, os dois sonhos me pressionam. Não consigo ler. Leio, mas não entendo o que leio. Aquilo me assusta também. Mesmo acordado, ainda estou dentro de meu pesadelo. Sem opção, volto para a cama.

Vem, então, o terceiro sonho. Estou sentado em um bar, diante de um caderno de notas. Tomo notas para um romance. Ele já está bem- desenvolvido, tenho muitas páginas escritas. Contudo, me esqueci completamente de tudo o que escrevi. Devo prosseguir, mas não sei como prosseguir. E algo me impede de reler o que já está escrito. Tento reler, mas – repetindo o que me aconteceu durante a vigília diante dos sites da internet –, simplesmente, não entendo o que leio. Uma tristeza absurda toma conta de mim. Então, um amigo se aproxima. Peço socorro. Ele se limita a dizer: “Se não lembra, trate de inventar”.

Acordo com a frase a me latejar na cabeça. Por algum motivo, o tema da ignorância me pressiona. Também o tema da cegueira. Enfim: da impotência diante do real. Preciso voltar a dormir, preciso descansar. A madrugada avança. Deito-me mais uma vez. Acontece que, mal prego os olhos, me vem o quarto sonho. Visito minha ex-psicanalista curitibana. Vera, ela se chama. Ela diz que tem um presente para me dar. Traz uma caixa enorme, que abro cheio de esperança. A caixa contém dezenas de pequenas peças de madeira, todas absolutamente iguais. Pergunto para que servem. Vera me diz: “Essas peças são as idéias que trabalhamos durante os anos de análise. Agora, cabe a você montá-las”.

Não tenho a menor ideia de por onde devo começar. A ignorância me devasta mais uma vez. Peço socorro a minha analista. Ela me adverte: “É assim mesmo, na ignorância, que você deve trabalhar”. Sei que a frase foi essa porque, assim que voltei a acordar, eu a escrevi em um bloco de anotações que fica sempre em minha cabeceira. Aflito, me levanto. Ainda não são cinco horas da manhã, mas desisto de dormir. Volto à cozinha e agora preparo um café preto. Preciso despertar – preciso me livrar desses sonhos. Para, quem sabe, descobrir o que fazer com eles.

Então, diante de duas fatias de torradas, uma ideia me volta. Uma ideia que sempre tenho. Talvez meio óbvia e um tanto antiga – mas, ao menos para mim, cada vez mais verdadeira. Os sonhos são mensagens que envio para mim mesmo. Quem os escreve, senão eu mesmo? No entanto (ignorância), eu os escrevo no escuro. Escrevo em pleno sono profundo, naqueles momentos em que, aparentemente, estou muito distante de mim. Talvez em nenhum outro momento, contudo, eu esteja tão próximo de mim. Afinal, essa escrita da noite me pertence.

O mundo de hoje parece devastado pelas certezas férreas. Pelas convicções. Pelas presunções de verdade. Por mandamentos teológicos. Por “fatos” – na verdade, ficções muito mal-embaladas – que a imprensa repete obsessivamente, até que se tornem “verdadeiros”. Nesse cenário, que se agrava no Brasil, meus sonhos vêm me advertir: é mais conveniente duvidar. É mais razoável não ter tantas certezas. É mais sábio ignorar. Como no texto de meu irmão: só as frestas abertas pela ignorância abrem a possibilidade de um futuro. Só através dessas frestas, em que nada sabemos, conseguimos enfim respirar.