Nos últimos tempos, e apesar de quase sempre recluso, o escritor Raduan Nassar apareceu na mídia para exibir firmes posições políticas – que, a propósito, compartilho. Depois de comentar um de seus depoimentos, ouvi de um amigo a avaliação maldosa: “Escritores, ora, estão sempre sonhando, não entendem nada a respeito da vida”. Recurso antigo, e frágil, o de desqualificar a palavra dos escritores com o argumento mesquinho de que eles não sabem o que falam. Lógica detestável, que a desclassifica em nome de sua suposta aversão ao real.
Este tem sido um consolo bastante comum para os que não suportam as críticas mais veementes e libertárias: dizer que elas não passam de clichês, de “ideias prontas”, que desconsideram, e por isso deformam, o mundo. Não passariam, em resumo, de ilusões. Já ouvi, certa vez, esse mesmo amigo desqualificar um político hoje na oposição com a pecha do “enlouquecimento”. Essas deduções, contudo, não funcionam quando se trata de um escritor da lucidez de Raduan. Basta deixar a preguiça de lado e se embrenhar em seus escritos.
Foi o que senti outro dia, quando reli O ventre seco, um dos relatos guardados em Menina a caminho, seu terceiro livro, de 1997. Lá se vão quase 20 anos, mas a literatura tem o poder não só de enfrentar o tempo, mas de usá-lo a seu favor. De que trata O ventre seco? Aparentemente, o pequeno conto é narrado por um cético. Ou por um “obscurantista”, como ele mesmo, logo na segunda página, prefere (injustamente) se definir. Mas de onde vem essa obscuridade, senão do próprio real? Não é o próprio real que – opaco, complexo, incoerente – nos impede de aceitar as soluções prontas e as frases feitas?
O narrador de Raduan se despede de uma relação amorosa. Em 15 parágrafos, numerados com aplicação, ele se defende das acusações que a mulher – uma mulher “que sabe o que diz” – sempre lhe dirigiu. Reconhece: “Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (excedendo-se, por sinal), me ofereceu presentes, me entregou perdulariamente o teu corpo, tentou me arrastar pra lugares a que acabei não indo”. Contudo, todo esse esforço de aproximação, em vez de torná-los mais próximos, só os afastou.
A mulher, sim, se alimentou todo o tempo de um projeto de dominação. Ela, sim, se considerou a “dona da verdade” – quando a literatura nos ensina que a verdade é escorregadia, é indigna de confiança. Diz o homem: “Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto da ignorância, e hoje, beirando os 40, estou fazendo também o meu voto de castidade”. A aceitação da ignorância – ao contrário do que a mulher supõe – não nos paralisa. Em vez disso, ela só nos empurra e nos faz andar. A mulher é feminista, luta a favor do divórcio e da liberação do aborto. Luta por suas causas – que aliás compartilho -, mas o problema não está aí. O problema é que suas certezas a impedem de aceitar a incerteza, ou incertezas, de seu homem. Elas a impedem de aceitar que o mundo é fragmentário e plural.
Isso, sim, é aceitar a realidade: acolher o contraste, a divergência, a dissonância. Uma realidade múltipla e oscilante não combina com as interpretações cerradas. Com dogmas. A literatura (a arte) é, antes de tudo, um instrumento de luta contra o dogma. E nada melhor para desmascarar o dogma – seja de que matiz ele for – senão contrastá-lo com a brutalidade do real. É isso, jogar seu leitor de cara no mundo, dá-lhe uma rasteira que o empurre para o chão, que a literatura de Raduan consegue fazer.
“Farto também estou das tuas ideias claras e distintas a respeito de muitas coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha confusão”, diz o narrador de Raduan. Algumas linhas à frente, ele nos diz: “saiba que a razão é muito mais humilde que certos racionalistas”. Mais uma vez, é do apego ao real, com suas incoerências e distorções, que se trata. Enfrentar a vida: eis o que é, em resumo, escrever. Mas, para dela se aproximar, o escritor precisa, primeiro, romper a barreira de dogmas e certezas que a encobre. Em outras palavras: a literatura – por mais que uma visão mofada da palavra, que se difunde em academias e em seitas, se propague hoje como uma peste – a literatura serve, antes de tudo, como via de acesso ao real.
Contudo, apegar-se à vida exige que se suporte a própria sensibilidade. Não apenas que se a suporte, mas que se faça uso dela. Escreve o narrador: “No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos espíritos só podiam mesmo se dar muito mal da vida”. Numa época em que se exalta a meritocracia e a vitória, nada mais útil do que observar o valor e mesmo a potência dos derrotados e dos desviantes. Hoje em dia – tempos do sucesso, do lucro e dos vencedores -, o fracasso é visto como uma doença. Ainda assim, não estamos, todo o tempo a fracassar? Não é a própria literatura não só um enfrentamento, mas uma aceitação do fracasso?
O real – nos mostram os escritos de Raduan Nassar – não é organizado, não é coerente, tampouco é “bem-sucedido”. Só a constatação dessa realidade instável nos leva, em consequência, à luta de viver. A escrita é luta – ou não é escrita que mereça esse nome. E na luta sempre fracassamos, o que significa dizer (constatação por vezes apavorante e pelo menos dolorosa) que a escrita é fracasso também.
No conto de Raduan, esse fracasso – ou decadência, ou precariedade, ou resto, seja o nome que se prefira dar – se materializa na personagem da “velha aí do lado”. Apenas uma maneira cruel de denominar a mãe do narrador, sua vizinha em um edifício de apertadas quitinetes. Dessa “mulher de ventre seco”, ele nasceu. Dela, a rigor, todos nascemos. Não é por outro motivo que estamos sempre por um fio, sendo a literatura nada mais que o exercício dessa condição. Porque não somos capazes de escrever, escrevemos. Porque não somos capazes de amar, amamos. O real está aí, a nos cutucar, a nos lembrar que, se somos filhos da derrota, ela é também a nossa única chance de viver.