Não consigo me afastar da Poesia completa de Manoel de Barros, publicada pela Leya, em edição de capa dura, no ano de 2010. Quanto mais leio, mais releio, mais retorno, em uma ruminação sôfrega que ouso chamar de poética. Ou que, pelo menos, imita a poesia. Nessas idas e vindas, estanquei em um livro em particular: o Tratado geral das grandezas do ínfimo, o décimo quinto livro de Manoel, publicado no ano de 2001.
Logo na primeira parte, em um poema chamado "A disfunção", Manoel de Barros apresenta uma síntese de seu saber poético, compactada nos sete “sintomas da disfunção lírica”. Ótimo tema, o da disfunção, para os dias atuais. Vivemos, hoje, estranhos e incômodos tempos conservadores, nos quais a eficácia e a felicidade se confundem com a norma. A intolerância, em conseqüência, se dissemina. Há uma busca frenética do “produtivo” e da uniformização. As diferenças se tornam insuportáveis, senão intoleráveis. Em um momento como o nosso, nada melhor do que recorrer à poesia.
Lembra Manoel em seu poema que o lugar-comum diz que poeta é aquele que tem “um parafuso a menos”. Corrige: “Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos”. Aqui surge a diferença – a troca - como valor poético. Prossegue Manoel: “A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica”. Mas é justamente a troca – a diferença – que se torna cada vez mais insuportável. No difícil período de nossa história, todos se agarram à salvação pelo Um. Tal posição só leva ao estigma e à paranóia. Trata-se, por excelência, de uma posição antipoética – uma posição que assassina a poesia.
No entanto, sigo os passos de Manoel de Barros, precisamos, mais que nunca, nos agarrar aos sete sintomas que definem o poeta. O primeiro deles fala da aceitação da inércia – proposta que parece abjeta em um mundo que se define, antes de tudo, pela velocidade. Não há poesia, no entanto, sem paralisia. Só a resistência à aceleração cria as condições necessárias para que o poema nasça. Só ela, diz Manoel, pode “dar movimento às palavras”.
Em um tempo dominado pela racionalidade e pelo pragmatismo mais absurdo - segundo sintoma -, precisamos desenvolver a “vocação para explorar os mistérios irracionais”. No desespero da turbulência contemporânea, muitos se agarram ferozmente ao recurso da razão. Não uma razão razoável, mas uma razão monolítica, impenetrável e, sobretudo, cheia de ódio. Contudo, sem a aposta nos elementos irracionais, não existe mundo suportável. Sem eles, não há poesia.
Precisamos também – terceiro sintoma – lutar contra a tendência obsessiva de caminhar sempre em linha reta. Como se o mundo fosse uma eterna corda bamba, da qual jamais podemos nos desviar. Ao contrário, aposta Manoel na potência dos desvios. O poeta é aquele que consegue enxergar “contiguidades anômalas” entre as palavras. A ênfase aqui está na idéia do anômalo, isto é, daquilo que está fora de ordem, fora das normas estabelecidas. É preciso ter a ousadia de não seguir as regras gerais do bom senso, do equilíbrio e da recompensa para fazer poesia. Ao escrever seus versos, o poeta não tem lucro algum, ele não ganha nada. Ao contrário: até perde. Mas esse desperdício (esse resto, que ninguém quer porque não apresenta utilidade) é justamente a poesia.
Quarto sintoma: não temer o que Manoel chama de “casamentos incestuosos”. O recado aqui é para os defensores do bom senso. Para os que se agarram aos padrões vigentes, aos modelos da moda, aos pensamentos dominantes. O que é o incesto senão uma relação considerada impura? Também o poeta experimenta relações, vínculos, experimenta paralelos que, em geral, são desprezados como nocivos. Aqui é também a idéia do nocivo que se ataca, para erguer em seu lugar o primado da invenção.
Chegamos – quinto sintoma – ao amor do “desimportante”. No mundo de hoje, todos querem prestígio, fama, sucesso e mais sucesso. A ideia da derrota se torna intolerável. Tornar-se pequeno é se tornar amaldiçoado. Pois sem a opção pelo pequeno, diz Manoel, não existe poesia. Aqui – sexto sintoma – é preciso valorizar aquilo que, no geral, se considera infeliz, ou grosseiro. Escreve: “Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra”. O que está em jogo nesse ponto é uma aposta apaixonada na transformação. O poeta não vê o que vê – vê o que quer ver. Primazia do desejo em um mundo apático e infeliz, regido pelas obviedades.
Sétimo e último sintoma do poeta: a “mania de comparecer aos próprios desencontros”. Estar onde não se está. Deslocar-se. Ausentar-se para, de uma forma torta e invisível, estar enfim presente. Ao poeta não agradam os crachás e as placas de sinalização. Não agrada a ideia de uma identidade fixa, que pode ser nomeada. E que se torna, no fim das contas, uma espécie de gaiola para a liberdade. O poeta está sempre em desajuste consigo mesmo. Por isso, para muitos ele parece indigno de confiança e, até mesmo, um mero falsificador. Parece um embusteiro.
Atributos – sintomas – da poesia cuja potência se intensifica em nosso pobre mundo cheio de almas submissas a algozes imaginários. Cheio de guardas do espírito. De disciplinadores. De pessoas que falam, cada vez mais, com o peito estufado, em nome da lei. Não se trata aqui de desprezar a lei, mas de verificar a que ela serve. Serve à vida, ou serve à morte? A poesia é sempre um caminho para o nascimento. Em princípio, como Manoel nos diz em versos mais à frente, “tudo pode ser”. Aos inspetores espirituais e aos vigilantes de bons modos resta a degola da repetição. Resta a sufocação – a asfixia mais extrema.
Vivemos, hoje, dias um tanto “sem ar” – como se o mundo tivesse se transformado em um grande porão. Há um mal estar que se generaliza. Há uma dor difusa que parece incompreensível – porque vem de todos os lados. Ler a poesia de Manoel de Barros ajuda a arejar o espírito. Como se abríssemos mil janelas que nos trouxessem, enfim, o sol. Por isso, o poeta matogrossense se torna cada vez mais importante: ele nos ajuda a viver em tempos sem nuances, no qual o paradoxo da poesia é não só desprezado, mas criminalizado. A poesia, no entanto, pode nos salvar. Os versos de Manoel estão aí, para quem deles desejar se servir.
Os sintomas da poesia
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- Categoria: José Castello
- Escrito por José Castello