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O século 21 me apresentou um autor – um filósofo contemporâneo – de quem não me afasto mais: o catalão Rafael Argullol (Barcelona, 1949), que é também romancista e poeta. É, antes de tudo, um artista. Depois de ler vários de seus livros, sempre editados pela Acantilado, da Catalunha, não largo mais um dos menores, mas igualmente, ou por isso mesmo, um dos mais densos deles: o Breviário da aurora, de 2006.

Trata-se de uma espécie de dicionário pessoal, contendo 360 “verbetes”. Sempre em ordem alfabética, eles começam com “absoluto” e terminam em “zôo”. Através de suas definições – podemos pensar em aforismos -, Argullol faz não só uma síntese de seu próprio pensamento filosófico, mas um resumo da sensibilidade de nossa época. A idéia da aurora é muito inspiradora, já que remete para a claridade (do nascer da manhã) e para o princípio (de um novo dia).

Esbarro, ao acaso – gosto de ler o Breviário da aurora ao acaso, sem me deter em nenhum tipo de seqüência, ou ordem -, no verbete “infinito”. Em palavras cortantes, o filósofo assim o define: “Qualquer fragmento do mundo quando vamos disfarçados de deus”. O infinito é algo de que só um deus pode falar; de que só um deus pode dar conta. Para nossos restritos olhos mortais, ele é invisível e se torna sinônimo do impossível. Ao defini-lo como “o que não tem limite”, o dicionário nos lança frente a frente com algo que não podemos abarcar e que também não podemos abraçar. E que só nomeamos por insistência e teimosia.

Argullol gosta dessas palavras difíceis – embora simples, talvez banais – que nos colocam diante de nossas próprias impossibilidades, que nos levam a esbarrar em nosso destino humano. Logo na página seguinte, encontro outra delas: “instinto”. A definição que o filósofo catalão nos dá é igualmente mortal: “O lobo antes de ser obrigado a levar a pele do cordeiro”. O instinto também é “infinito” – também pode tudo e deseja tudo. Fôssemos guiados só por ele e nos igualaríamos às bestas, que não obedecem a princípios, tampouco cultivam tabus. Só quando decidimos carregar uma pele de cordeiro (um manto civilizado) conseguimos, enfim, viver. Mas a que sacrifícios! O instinto, em sua essência, também aponta para o que não tem limites. Ele nos lança no inferno do infinito, onde nosso próprio Eu se desmancha.

É assim Argullol: agarra as palavras justamente pelo que elas têm de mais violento. Exibe as palavras sempre como freios que ajudam a nos conter e, assim, nos ajudam a viver. Sem elas, nos dissolveríamos na grande borra do silêncio. É nesse estado de espírito que pulo para a letra “V” em busca de uma das mais difíceis das palavras: “verdade”. De novo, Argullol não adoça as coisas, não facilita, tampouco barateia. Vai direto ponto – direto ao coração do pensamento que tem pela frente. Sobre a “verdade”, ele nos diz: “O matiz minúsculo que evita que sejamos sepultados pelo peso da Verdade maiúscula”. Toda verdade que temos – que tocamos – é apenas passageira, e é, sobretudo, limitada e pessoal. Pensar nas pequenas verdades, se não serve para muita coisa, nos ajuda pelo menos a escapar do peso da grande Verdade, essa sim, mortal.

Mas é preciso contrabalançar. Mesmo em meio aos imprevistos da verdade, é preciso buscar algum ponto de equilíbrio. De sobrevivência. Pulo uma página e chego à palavra “violência” – de que falávamos ainda pouco. Aqui Argullol nos defronta com o perigo do ilimitado. A vida exige limites, exige um desenho. Um dia, um amigo definiu: “Viver é editar”. Isto é, é delimitar, é circunscrever, é desenhar. O verbete “violência” nos coloca justamente diante dessa necessidade imperiosa. Anota Argullol: “A vida desgarrando-se pelo temor de viver”. Curioso pensar que a violência inclui, necessariamente, um grande medo. Medo de que? Da vida. A violência é uma espécie de reação sem direção. É um estrebuchar – um agitar-se em convulsão, sem nenhum objetivo, sem nenhum pedido ou busca. Nada. Agitar-se por agitar. Isso sim é jogar a vida fora.

Vou procurá-lo, mas, curiosamente, Argullol não lista o verbete “vida”. Por que será? Recuo um pouco, contudo, e chego a “vergonha” – o que talvez explique um pouco essa ausência. Descreve: “Dispositivo de alerta pelo qual nos vemos como realmente somos”. A idéia de vida – ampla, irrestrita, quase onipotente – parece grande demais para aqueles segundos cósmicos que cabe a cada um de nós viver. Somos um suspiro no infinito – um soluço? A vergonha, Argullol nos diz, vem para nos proteger. Do mesmo modo em que escondemos as “vergonhas” com nossas precárias roupas, temos muito mais ainda a esconder. Que precisamos esconder, para sincronizar com nossa pequena humanidade.

Salto para trás e voltando à letra “E”, esbarro em duas palavras cruciais. A primeira é talvez a mais importante em toda a obra de Rafael Argullol: “enigma”. Ele está no centro de tudo. O enigma arrasta tudo, contamina tudo – é o próprio coração do ser. Assim o filósofo o define em seu dicionário: “O véu que oculta aquilo que, como deus, já sabes”. Sim: já sabemos, mas não ousamos dizer. O enigma é aquilo que nos puxa para a frente. É o que nos põe de pé. Ocultando, ele nos faz avançar. Repetindo aquilo que já sabemos, ele envolve a existência com o manto protetor do segredo.

No parágrafo anterior, outra palavra chave: “enfermidade”. Argullol a define: “O estado natural quando desaparece o espelhismo da terra firme”. Quando perdemos as ilusões de firmeza – quando perdemos o chão – “adoecemos”. O que isso significa? Que chegamos (outra palavra crucial para o filósofo) à nossa imperfeição. A “doença” não passa disso: consciência dolorosa dos limites e das imperfeições. Dói, mas salva – porque nos defronta com o que realmente somos.

Não: Argullol também não ousa definir a imperfeição. Ela é tão complexa, tão fundamental, tão definidora, que não parece caber no território aconchegante de um dicionário. Aqui chegamos a duas outras definições essenciais para o filósofo. A primeira: a idéia de rebeldia. Ele define: “O amor pela verdade prevalece sobre o temor à verdade”. A rebeldia se associa, assim, à coragem. Coragem de ser. Outra palavra, logo acima: “realidade”. A definição nos coloca frente a frente com o osso da verdade: “A atualidade em processo de erosão”. É assim, alquebrados, limitados, até um pouco tristes, que devemos viver a alegria.