Mar Selvagem 1 A

Desde que o li, pela primeira vez, no ano de 1960 aos 9 anos de idade, Robinson Crusoé, o célebre romance de Daniel Defoe, se tornou para mim um modelo de vida. Aos 14, quando descobri espantando a obra de Franz Kafka nas páginas de A metamorfose e senti o desejo desconhecido de me tornar escritor, o romance de Defoe se tornou um roteiro para a escrita. Sim, exatamente como Robinson, o escritor é aquele que nasce do nada, que parte do zero, que precisa se inventar para existir.

Robinson tem, também, uma relação especial com seu autor, Defoe. O livro narra a história de um homem nascido em 1632. Portanto: 28 anos antes do nascimento do próprio Defoe, no ano de 1660. Em um espelhamento, Robinson Crusoé vive outros 28 anos na ilha deserta em que é lançado após um naufrágio. Desde então, parece que é sempre assim que se dá com o romance: ele gruda na vida. Carlos Drummond sempre falou da importância que o livro teve em sua formação. Muito antes dele, Jean-Jacques Rousseau reafirmou que Robinson foi uma de suas mais fortes influências literárias.

Não conhecia a poesia de Drummond, nem sabia quem era Rousseau, quando li Robinson pela primeira vez. Desde então, eu o reli muitas vezes — a mais recente delas, nesse verão de 2016, aos 65 anos de idade. Cinquenta e seis anos depois da primeira leitura, o impacto que o livro causa em mim não muda. É claro: irrito-me um pouco com o proselitismo religioso a que Robinson, por tantas páginas, se entrega e — diante dos horrores do mundo contemporâneo — relativizo um tanto, embora elas sempre me choquem, as cerimônias de canibalismo que, na infância, carregavam para mim a impressão de pura fantasia de horror, fato que, infelizmente, a realidade tratou de desmentir.

Robinson parte de migalhas e também dos destroços de seu próprio naufrágio para construir sua vida na ilha deserta. Parte de quase nada — exatamente como o escritor, que começa quase sempre de uma página em branco e nada mais que algumas ideias soltas. Na opção pela escrita — como também no caso do herói de Defoe — há um tanto de revolta e ainda de interesse pelo risco. De aceitação do perigo. Há um tanto de loucura, ou não se escreve coisa alguma.

No breve prefácio de Robinson Crusoe, um conjunto de quatro parágrafos curtos, está dito: “O editor também acredita tratar-se de uma história verdadeira dos fatos, não havendo nela qualquer aparência de ficção”. Também Daniel Defoe nunca admitiu o caráter inteiramente ficcional de seu romance. Em dimensão paralela, tanto o leitor como o escritor partem sempre da suposição íntima de que aquilo que se narra “no fundo é verdade”. Tanto que, mesmo muitos anos depois de publicá-los, os escritores não param de ouvir perguntas a respeito da veracidade de seus relatos. Verdade e mentiram se enroscam para formar a ficção.

Também Robinson constrói, com a vida errante, sua própria assinatura. Originalmente, ele se chama Robinson Kreutznaer. Com o avançar dos dias, reinventou o próprio sobrenome como Crusoé. Para lançar-se ao mar, precisou enfrentar os “conselhos graves” do pai, imitando os escritores a quem, na maior parte das vezes, só a coragem e a determinação leva a adotar a própria vocação. Passo a passo, como o desenrolar das páginas, mais me convenço de que Robinson é uma espécie de modelo para os escritores. Um espelho doloroso e áspero, que descreve com precisão os desvios, os riscos, o mar selvagem que um escritor deve enfrentar até chegar a si mesmo.

Todo escritor parte de uma dúvida — deve entregar-se à aventura cega da escrita, correndo o risco do fracasso e do desastre (do naufrágio), ou deve se contentar com a escrita mediana e fria da vida diária? Também Robinson luta consigo mesmo antes de fazer a viagem decisiva que o conduz a sua ilha solitária. A própria ilha é uma metáfora perfeita da condição do escritor, que conta apenas com si mesmo para produzir e também para ser. Também o escritor precisa se defrontar com o estranho e com o desconhecido; só assim chega a dominar sua linguagem própria e sua voz interior. Em seu exílio, ele logo descobre a inutilidade de um projeto que não leve em conta as condições da realidade. Escrever é, um tanto, “adaptar-se” aos próprios impulsos, divagações e fantasias, mesmo sem entender exatamente o que eles significam e para onde eles o conduzem.

Para o escritor, tudo começa com uma perseguição (de salvação) e também com uma fuga (um medo fundamental que, como um monstro, ele precisa enfrentar). Tudo começa com um deserto e entre estranhos — tudo começa na mais funda solidão. O título do quinto capítulo do romance, “Maldita hora em que subi a bordo”, resume as graves consequências envolvidas quando se faz a escolha da ficção. Mas não adianta arrepender-se: a aposta está feita e só resta prosseguir no jogo. Apesar das dores, exatamente como Robinson experimenta, o escritor atravessa também, e ao contrário, momentos de êxtase que, se não compensam o sofrimento, lhe garantem um destino. Todo o tempo, ele luta para ser — e é essa luta sem fim que resultará em sua escrita. Através das palavras, chega a si. Só através dos nomes que é capaz de emprestar ao mundo, chega a habitar um mundo apenas seu.

Antes da escrita, o mundo interior dos escritores é uma espécie de mar selvagem, que precisa não só ser vencido — através de um acordo, mas nunca da vitória — e ainda organizado da melhor maneira possível. Para sobreviver, o escritor precisa primeiro errar muito — tanto no sentido de “fracassar”, como no de “perder-se”. É do erro, e do debater-se nesse deserto grosso e úmido, que ele arranca enfim suas palavras. Em uma das suas visitas ao navio naufragado, Robinson encontra moedas de ouro, mas essa riqueza antiga já não lhe serve para nada. Tudo o que ele tem é o presente. E mais ainda: tudo o que tem é o vazio do agora. Cavando nesse grande buraco, ele, aos poucos, se reconstrói como homem até, muitos capítulos à frente, ter a chance de encontrar o resgate e a salvação. Sem contar com nada e com ninguém, sem nenhum limite, o escritor, em seu deserto, “pode tudo”, e é a partir desse “pode tudo” que ele, enfim, balbucia as primeiras palavras.