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Admito, sem qualquer constrangimento: não sou um bom leitor de teoria literária. Para pensar a literatura e sua produção, prefiro, em geral, tomar distância, adotando perspectivas imprevistas. Um ensaio breve que sempre me ajuda vem do Império Romano. Falo de Sobre a tranquilidade da alma, publicado por Lúcio Sêneca nos primeiros anos da Era Cristã e que recentemente mereceu uma nova edição brasileira pela Penguin/Companhia das Letras, em tradução de José Eduardo S. Lohner.

Nele, Sêneca responde a um amigo, Sereno, que lhe pede um remédio capaz de estancar sua flutuação de espírito. Costuma ser esse também um dos primeiros pedidos que me chegam em minhas oficinas: “Como saber o que realmente quero?” Os alunos — a palavra não presta, mas não conheço outra melhor — sabem que querem escrever; mas têm a mente tão atulhada de ideias e de possibilidades que a riqueza, em vez de empurrá-los para a frente, os paralisa.

Reclama Sereno que, muitas vezes, se vê arrastado por vozes que não lhe pertencem. Como se fosse refém de um espírito alheio. “Não cedi a posse de mim mesmo a ninguém, nem levo o nome de um senhor”, diz Sêneca. “Muitos teriam alcançado a sabedoria se não tivessem dissimulado algumas de suas imperfeições”, ele prossegue. Aceitar os próprios deslizes é fundamental para a chegada a si. Sêneca faz o amigo ver que ele precisa, antes de tudo, se livrar dos males da inquietação. A busca da serenidade é um elemento essencial para a posse de si mesmo.

É quase impossível enfrentar a escrita se você tem uma alma, como diz Sêneca, “que não se detém em parte alguma”. O espírito precisa de um lar — o próprio Eu — e precisa de paredes que o delimitem. Diz o filósofo: “Ao passo que a energia dos leões e de outros animais é refreada nas jaulas, o mesmo não ocorre com os homens, cujas ações mais importantes se dão na solidão”. Os limites — as paredes — se tornam, então, peças fundamentais da liberdade, até porque toda liberdade é parcial. Por isso também não se deve temer a agitação interior, que mesmo em uma jaula subsiste. Sugere Sêneca que o discípulo aprenda a manter-se em movimento. Que se liberte das amarras do medo. Que seja o que é e aceite isso.

O primeiro passo para quem deseja chegar a si — para quem deseja escrever — é avaliar a si mesmo. Dominar o espaço da própria liberdade. Conhecer o que lhe pertence e o que lhe é alheio — discernir as fronteiras e os limites. “A índole arrojada e sem medo deve evitar os estímulos de uma liberdade que lhes será nociva”, escreve Sêneca. Instalar-se dentro de si mesmo, e ali, “preso em si”, resistir. Sugere ainda: “É necessário considerar se nossa natureza é mais apta para a realização de ações ou para o recolhimento do estudo e da contemplação, e nos inclinar para onde chamar nossa vocação”. Conferir molduras à própria imagem.

Repito a meus alunos: seja o que você é e só comece a escrever a partir disso. Repiso as palavras de Sêneca: “Acostumemo-nos a afastar de nós a pompa e a levar em conta a utilidade das coisas, e não seus ornamentos”. Para escrever (para viver) é preciso, primeiro, ultrapassar uma longa cadeia de aparências. Para isso, é preciso admitir que nada poderá nos resguardar da instabilidade da alma e que não devemos temê-la. “Alguns desejos irão aguilhoar nossa alma e, tendo sido delimitados, não a conduzirão ao descomedimento e à incerteza.” Novamente: a necessidade de fixar balizas. De abdicar do supérfluo e se deter naquilo que realmente nos agita. Não existe outra maneira de deter a inquietação, senão partir dela mesma. Não existe outra maneira de escrever, senão partindo daquilo que temos, por mais perturbador que nos pareça.

Em um processo de vida — de escrita —, tudo pode acontecer e mesmo o fracasso deve ser suportado. “Saibas, portanto, que toda condição é variável e tudo o que ocorre com alguém pode ocorrer também contigo”. Incluir o inesperado. Contar com a aliança da surpresa. Fazer alguma coisa do destino, que toma formas imprevistas e nos agita em momentos súbitos. Mas, se é preciso estar em movimento, é importante também não se agitar por nada. Fala Sêneca, com ênfase, contra o cansaço inútil e o vaguear sem direção. Não dispersar-se em muitas atividades — concentrar-se no principal, ou nada se vive, e nada que preste se escreve. Vejo nas oficinas: alunos sobrecarregados de ideias são, por vezes, os menos produtivos. Tudo se esfarela, tudo é logo esquecido, tudo se perde. Em resumo: acreditar nas próprias escolhas e a elas se agarrar.

É preciso, também, não ter medo de mudar, contanto, alerta Sêneca, “que não nos domine a inconstância”. Diz: “De todo modo, a alma deve retirar-se de tudo que lhe é externo e voltar-se para si mesma; tenha autoconfiança, alegre-se, valorize seus bens, distancie-se o quanto puder dos bens alheios e consagre-se a si mesma”. Saber a hora de mudar não por um impulso externo, mas por uma necessidade interior. Não valorizar demais as adversidades: “Tudo deve ter sua importância reduzida e ser tolerado com benevolência”. Pequenos vícios, defeitos antigos, tiques — de tudo isso um escritor, em vez de fugir, deve se aproveitar. Contra a vida artificial dos padrões e dos modelos, dedicar- -se a uma constante observação de si — e dele fazer seu ponto de partida.

E, sobretudo, não temer o desequilíbrio, as osculações e mesmo os momentos em que a loucura nos ronda. Apesar da ênfase na queda em si, é preciso aproveitar também os momentos em que a alma se perde e se dispersa, mostra Sêneca. Em vez de lamentar-se, tirar partido desses momentos. Lembra, então, a sentença do poeta grego: “Por vezes é também prazeroso desatinar”. Lembra ainda de Platão, que disse: “Em vão alguém bateu à porta da poesia sem estar fora de si”. E de Aristóteles, quando ele escreveu: “Não houve grande engenho sem uma mescla de insânia”. Sem uma dose de perturbação e de desatino, nada de bom se faz. A insânia só vem confirmar e expandir a queda em si mesmo.

Resume Sêneca: “Só uma mente alterada pode expressar algo grandioso e fora do comum”. Essa queda fora de si — uma espécie súbita de desmaio — vem apenas alimentar aquilo que se é e expandir os limites do sujeito. É preciso tropeçar para erguer-se com mais convicção. Repito sempre a meus alunos que eles não devem temer seus erros e tropeções. Muitos me olham espantados. Ainda são prisioneiros da ilusão de só acertar. Ninguém se sente tranquilo assim.