Recebo, em minhas oficinas literárias, muitos alunos que chegam com a ilusão de que a literatura, enfim, tornará clara e transparente suas vidas. De que a literatura os salvará. A literatura — a arte — não deixa de salvar. Trata-se, contudo, de uma redenção turbulenta. Se ela nos livra dos clichês e vícios de pensamento, se ela nos liberta do inferno da repetição, e isso é verdade, ao ampliar nossos horizontes ela nos lança em um mundo mais complexo e mais indecifrável ainda. A literatura não resolve nada — não “cura” dor alguma. O que ela nos oferece são novas maneiras de observar e conviver com essa dor.
“A famosa idéia de que falando podemos nos entender me parece sumamente perigosa”, escreveu o escritor argentino Juan José Saer (1937-2005). “Basta assistir a uma discussão conjugal para dar-se conta de que falando, na verdade, não nos entendemos”. Escrevendo também não — ou mais ainda. Desde que nos conhecemos, no ano de 1999, em seu apartamento em Paris, adotei Saer como um mestre. Foi nosso único encontro, mas foi o suficiente para que, até hoje, suas palavras continuem a me atravessar e a me sacudir.
Leio os pensamentos de Saer em Diálogo, registro em livro de uma longa conversa entre ele e seu conterrâneo Ricardo Piglia (1940), publicado pela Universidad Nacional del Litoral, da Argentina, em 1995. O próprio Saer me deu o livro de presente. A partir dali, tornei-me um leitor obstinado de seus ensaios — que, na verdade, me parecem ainda mais fascinantes do que suas ficções. “As palavras nem sempre dizem o que querem dizer. Ou dizem, mas dizem menos”, ele continua. Nossa inadequação ao mundo não passa de um efeito de linguagem. Falando não nos entendemos e, por isso, em vez de amainar, nossa solidão aumenta. Escrevendo, muito menos.
Derrubadas essas ilusões de acolhimento e compreensão, para que serve, então, a literatura? Se ela nos defronta com o perigo da dúvida, por que continuamos a escrever? Um desejo insistente, e muito justo, é o de escrever para enfim encontrar nossa voz interior. Não para realçar nosso Eu, mas para que o que carregamos dentro dele, bem escondido, possa enfim se expressar. Há um desejo de verdade a mover toda escrita. No mesmo diálogo, agora é Piglia quem me ajuda: “O escritor escreve com a fantasia de que a língua que usa é uma língua privada”, diz. Com Saer, contudo, ele aprendeu que, ao escrever, nos defrontamos com um problema: o da impossibilidade de uma língua privada e o desejo de encontrá-la.
Escrevemos para ser, mas a língua nos arrasta para um território que nos ultrapassa e que também nos submete. A língua é nossa, mas não é nossa. Como suportar esse paradoxo? Como aceitar que, por mais que busquemos nosso caminho pessoal, estamos sempre atrelados – como peixes que se debatem nas malhas de um pescador — a uma rede que se estende muito além de nós? Além disso, mesmo no uso pessoal das palavras (que configura, enfim, a literatura), nos diz Saer: “existem palavras que não podemos utilizar quase que por razões fóbicas”. Cada um tem seus próprios medos, e eles fixam os limites de nossa relação individual com a língua. Em consequência: além dos limites externos (a língua não é nossa propriedade particular), existem os limites internos (medos, repulsas, fobias) que nos impedem, igualmente, de chegar enfim a uma língua privada.
Trata-se, portanto, de um processo que nunca termina. Diz Saer: “À medida que se exerce a prática da escrita, se vai constituindo esse mundo verbal próprio. Uma espécie de mania repetitiva e uma adesão irracional a certas palavras”. Dizendo de outra maneira: chegar à própria voz é, antes de tudo, esbarrar nos limites que a constituem. Não: a literatura não nos permite “dizer tudo”, até porque esse “tudo” não passa de uma abstração. “Muitas vezes escolhemos certas palavras ainda que elas não digam exatamente aquilo que queremos dizer”, ressalta Piglia. Não é possível escrever sem a aceitação do impreciso e da incerteza. Portanto: não é possível escrever sem que se admita o limite do medo. Medo de que? Medo da própria escrita.
É por isso também, acrescenta Piglia, que a literatura talvez seja o contrário do turismo. Quando fazemos uma viagem turística, carregamos conosco — além de guias, folders, roteiros — um insistente desejo de conhecer e de descobrir. Lamenta Piglia que, ainda hoje, muitos leitores frequentem as páginas de seus escritores favoritos com o desejo de “descobrir suas obras, como se elas fossem lugares turísticos até então inexplorados”. Em vez de nos fornecer respostas, a literatura produz novas perguntas. Lendo uma ficção, somos colocados na situação absurda de um viajante que só encontrasse em seu guia de viagem um punhado de dúvidas, incertezas e lacunas; elementos não de orientação, mas de desorientação.
Em vez de encontrar uma obra, ou um escritor, talvez encontremos, antes de tudo, a nós mesmos. “Quando li Faulkner pela primeira vez, descobri uma porção de coisas de mim mesmo”, recorda Piglia ainda. Mas que porção? Uma ficção não é uma chave que descerra novas paisagens e franqueia novas claridades. Ao contrário: ela nos defronta com uma espécie de espelho negro, que nos devolve tudo aquilo que desconhecemos a nosso próprio respeito. Que nos coloca diante do enigma que somos para nós mesmos. Daí a frustração dos alunos que chegam às oficinas com o desejo de se conhecer. Algo de nós, de fato, se chega a conhecer. Mas é como se, ao observar o firmamento, nos deparássemos apenas com a face escura da Lua. Território enigmático, que nos desafia e desloca, em vez de nos tranquilizar. A relação de um leitor com o texto é uma relação de desconhecimento, e não de conhecimento.
Lembra Saer que, no trabalho da escrita de ficção, há um elemento fixo e um elemento fluido. “Efetivamente, existem elementos incontroláveis que aparecem todo o tempo”. É verdade: o inesperado que nos surge nem sempre é conservado. Nem sempre um escritor consegue sustentar o estranho e o perturbador. Saer recorda então que toda ficção persegue uma coerência estética. Ele pode descartar, em nome do sentido, grande parte daquilo que o desafia. Só não pode, não poderá nunca, disso efetivamente se livrar. A dúvida continuará a massacrá-lo. As perguntas continuarão a ecoar no bojo de seu texto. O perigo o rondará até o final.
Ficção e perigo
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- Categoria: José Castello
- Escrito por José Castello