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O romance Antes da festa do escritor bósnio Sasa Stanisic é denúncia contra um processo de extinção. E começa com a descrição de uma morte. O barqueiro de uma aldeia na Alemanha morre. E não há outro para ocupar o seu lugar. As pessoas estão indo embora, morrendo ou sumindo e não apenas suas essências não podem ser substituídas. Também suas funções. Mas o que acontece quando ninguém mais pode ser barqueiro?

“Agora o barqueiro está morto, e não sabemos quem irá nos contar o que as margens fazem. Quem poderá nos dizer, de modo assim tão bonito: ‘Onde o lado toca suavemente a estrada’, e ‘Era atum dos remotos mares da Noruega’. Frases assim só barqueiros sabem dizer. Desde a queda do muro, não edificamos mais nenhuma sentença que presta. O barqueiro era um bom contador de histórias. Mas nem por isso você deve acreditar que nesse momento de fraqueza perguntaremos ao Lago Profundo, que sem o barqueiro se tornou ainda mais fundo, como ele está. Ou ao Lago Grande, que afogou o barqueiro, qual foi o seu motivo”.

Antes da festa é contado com palavras que remetem à construção de uma fábula. E quando falamos “fábula”, não estamos nos referindo apenas a um tipo de história que retrata e defende uma moral. Mas um tipo de texto construído com um certo vocabulário que tem sua poética justamente num tempo que não conseguimos alcançar, distante. Algo que aconteceu antes de quando estamos vivendo e que escapa da precisão dos livros de história. Antes da festa é um romance regionalista. Mas não regionalista porque transcorre num ponto específico e temperamental. O regionalismo, no fundo, é mais sobre um processo temporal que geográfico.

Sasa nasceu em Visegrad, na Bósnia. No começo da adolescência, fugiu para a Alemanha para se refugiar da guerra. É considerado hoje um dos autores mais inventivos da literatura alemã. E escreve apenas em alemão, porque precisa criar numa língua em que se sinta seguro.

Apesar de ser um exilado de guerra, a guerra não foi uma realidade tangível durante grande parte da infância de Sasa. A guerra era coisa que acontecia numa parte distante do seu país, como fogos artifícios que se ouvia ao longe e ninguém sabia o porquê – como a festa que percorre a trama do seu romance, sobre um festejo que acontece todos os anos, mas que ninguém consegue mais detectar sua origem. Nada acabou, nem começou e não há aniversário a ser comemorado no dia dessa festa, que talvez exista apenas para demarcar que certas vidas, certos modos de vida, ainda persistem. Talvez toda festa seja, no fundo, para dizer: isso, eu ou você ainda existimos, de alguma forma, em algum lugar.

Mas houve um momento em que guerra chegou. Os fogos de artifício invadiram a casa. “Mesmo quando a guerra nos fez fugir de casa, nos levou ao exílio, ela continuou parecendo uma coisa distante. É como o amor. O amor e a guerra são temas tão enormes na literatura, que nos levam a questionamentos infinitos. É difícil explicar a experiência do amor e da guerra, por isso tentamos tanto explicá-las, tantas e tantas vezes. São experiências tão fortes que mesmo quando acontecem com a gente, dão a impressão de que aconteceram com outra pessoa”, explicou Sasa, durante sua mesa hoje à tarde na Flip.

Pela sua fala, a impressão que Sasa deixou é que, como exilado de guerra, ele usa a literatura para se sentir seguro – as palavras de fabulação numa língua que existe longe da sua casa original destruída – e para entender o que lhe aconteceu, de forma tão intensa, que só poderia ter ocorrido com outra pessoa. Como aponta esse trecho de Antes da festa: “O senhor Schramm não tem medo da morte, a morte ninguém vive. No verão, a morte ainda não era uma ideia, no verão, o senhor Schramm queria tentar a vida mais uma vez, talvez se apaixonar”.