A memória traumatizada das cidades
Na coleção de ensaios Tempo Presente: Notas sobre uma mudança da cultura, há um texto no qual a crítica argentina Beatriz Sarlo recebe um grupo de estudantes que está protestando contra a destruição de um carrossel, numa região histórica de Buenos Aires. Queriam sua assinatura num abaixo-assinado pela preservação do brinquedo. Ela não se mostra muito animada com a mobilização. Os estudantes ficam perplexos. “Eu não sou necessariamente a favor de que um carrossel seja preservado. A questão não é o carrossel, mas o que será feito com essa área quando o carrossel deixar de existir”, lembrou Sarlo, numa conversa hoje de manhã com o Suplemento Pernambuco.
“As cidades mudam, se você olhar a história é o que acontece. É o que ocorreu com a Paris do século 19. Mas o problema não é a mudança das cidades, mas o que essa mudança irá acarretar. Se o governo facilita a construção de uma grande torre de edifícios ou de um shopping, devemos nos perguntar a serviço de quem essas novas construções são feitas. Em geral, para os ricos, para a classe média. Nunca para os pobres, que ficam cada vez mais isolados. O problema não são as transformações das cidades, mas o capitalismo global que não compartilha com os que mais precisam”, continuou a autora, que está na Flip para divulgar o e-book Viagens da Amazônia às Malvinas.
A questão da cidade é uma preocupação constante na obra de Sarlo. Ela já percorreu os subúrbios da capital portenha para entender suas transformações no livro Modernidade periférica. No recém-lançado e-book, discorre sobre o inferno e o paraíso de uma Brasília que ela visitou (só uma vez e deliberadamente uma só vez) e logo após sua construção. “Uma pergunta que devemos fazer é: por que todos querem a cidade? Por que todo mundo quer viver em São Paulo, em Buenos Aires? Todo mundo quer morar perto do trabalho, do hospital...Todos querem um pedaço das cidades e todos têm direito à cidade. Essa é uma tensão que devemos pensar a respeito, porque todos têm direito à cidade”.
Outro tema recorrente do seu trabalho é justamente o problema da memória traumatizada. E traumatizada, no caso da América Latina, pelos regimes ditatoriais que se tornaram um denominador comum do Continente na segunda metade do século passado. Perguntei a Sarlo o que ela achava dos movimentos pedindo o retorno da ditadura, que passamos a vivenciar no Brasil, sobretudo nas redes sociais: “Não é possível pensar em algo semelhante ocorrendo na Argentina. Nem no Chile. As pessoas votam bem ou mal, mas pedir a volta de uma ditadura como uma saída... Isso não ocorre na Argentina”.
Sarlo destacou ainda o quanto essa memória traumatizada se tornou um tema constante na literatura argentina dos últimos 30 anos. O contrário ocorreu no Brasil, com exceção de casos isolados. “Pensar na ditadura como uma solução só pode ocorrer em grupos minúsculos, infames”, continuou. Semana passada a crítica se posicionou a favor do escritor argentino Pablo Katchadjian, processado pela viúva de Borges, Maria Kodama, que alegou que seu livro O Aleph engordado não passaria de um plágio de O Aleph, texto chave do cânone literário da Argentina. “Isso só pode ocorrer por ignorância, por ignorância de Kodama. Não quero voltar a dizer que não podemos ler Borges seriamente enquanto ela estiver viva, porque não quero ser outra vez processada (Sarlo foi processada pela viúva, há alguns anos, justamente por essa declaração). A questão que tem de ser resolvida é a de direitos autorais. Não podemos deixar o destino do legado de grandes autores ser resolvido por familiares ignorantes”, destacou.
Ao final da conversa, e ainda falando sobre Borges, Sarlo teceu alguns comentários sobre Kodama: “Ela (Kodama) era o tipo de mulher que Borges gostava. Ele só andava com mulheres que não viviam no presente, que tinham aquela postura de damas, de aristocráticas. Mulheres que só iram ficar elogiando seu trabalho, carregando ele para cima e para baixo. Ele não suportaria uma mulher forte”.