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Quando descobriu a psicologia dos personagens, Dostoiévski percebeu que ali estava o caminho da grande literatura. Por isso, em carta a um irmão confessou que estava provocando uma revolução na literatura — que alguns críticos e estudiosos chamam de revolução copernicana ao trazer o personagem para o centro da narrativa. Ou seja, ao humanizar a narrativa com os personagens travando uma grande luta psicológica, revelando, sobretudo, seus fracassos e suas fraquezas.

 

Na verdade, até aí os personagens eram quase deuses, principalmente nas epopeias, onde os fatos e as ações eram enfatizadas, mesmo que houvesse alguma inquietação e alguma leve reflexão, como em Dom Quixote, por exemplo. Por isso, o livro de Cervantes é o livro inaugural do chamado romance burguês, com o homem abismado com o seu próprio abismo mental. Vem daí a grande admiração que Freud tinha pelo escritor russo.

 

Sentimentos

Coube a Dostoiévski, portanto, mostrar que o homem é um vulcão de sentimentos, fraquezas e zombarias, ironias e torturas — tudo dentro de um só — através dos seus monólogos entrecruzados, num mergulho que até então a literatura desconhecia, com alguma incursão no teatro grego, em obras como Édipo, embora os fatos ainda prevaleçam.

 

A leitura de Uma criatura dócil, na edição da Cosac Naify-2013, feita por Fátima Bianchi, nos revela, por exemplo, as contradições dos personagens, sobretudo naquela sutil transição entre a sedução consciente e as armadilhas do ser. Na verdade, o próprio Dostoiévski se mostra surpreso com as armadilhas da mente, a ponto de chamar a narrativa de fantástica, tudo porque a psicologia era pouco conhecida e estava sendo estudada de modo iniciante.

 

O grande autor russo se dá conta de que ali há mais matéria inquietante e dramática do que podia imaginar. Surpreende-se e inquieta-se. No prefácio, Dostoiévski revela esses sustos, inquietações e surpresas. “Aí é que está, ele (o personagem) fala consigo mesmo, conta o ocorrido, tenta esclarecê-lo para si próprio. Apesar da aparente coerência do discurso, algumas vezes se contradiz, tanto na lógica como nos sentimentos. Ao mesmo tempo em que se justifica e culpa a mulher, deixa-se levar pelas explicações esquisitas: há nisso tanto de rudeza de pensamento e de coração como um sentimento profundo. Aos poucos consegue esclarecer para si o ocorrido e ‘concentrar os pensamentos num ponto’. Por fim, evoca uma série de recordações que inevitavelmente o levam à verdade; a verdade inevitavelmente eleva seu espírito e seu coração.” Percebe-se aí a imensa perplexidade do autor diante de seu personagem e diante da técnica que teve de usar para escrever esta curta — não pequena, mas apenas curta novela. Curta e, no entanto, gigantesca. E passa a revelar, em seguida, o imenso trabalho que teve para acompanhar as reflexões do seu personagem agiota, a ponto de desejar a colaboração de um estenógrafo.

 

E, mesmo aí, ainda não se conhecia o monólogo ou o solilóquio como técnica, tendo Dostoiévski dado os passos iniciais, cabendo a Joyce o aprofundamento, apesar das antecipações do francês Edourd Dujardin, no final/começo dos séculos 19 e 20. Uma criatura dócil é, assim, uma das obras mais representativas do escritor russo, embora nem sempre citada e, muito menos, estudada.

 

Do ponto de vista técnico, a novela estruturada como uma sucessão de pequenas histórias dentro de histórias, onde são ressaltadas as mudanças de humor do personagem e da personagem, de forma a transformar reflexões em ações — muito diferente daquilo que se vinha fazendo antes. Aqui as reflexões são mais importantes do que os fatos, ou seja, os fatos são condicionados pela reflexão. Uma reflexão copernicana, com certeza. Algo que a própria literatura não costuma valorizar, que é a participação da técnica na obra de arte ficcional.

 

Os fatos são tão pouco importantes na obra de Dostoiévski, que um fato importantíssimo nesta novela — o personagem confessa que se envolveu num acontecimento dramático e tenebroso, mas não diz o que foi —, de modo a causar mais do que uma elipse, causa mesmo um extraordinário abismo psicológico, que enfeitiça e seduz o leitor.

 

Dostoiévski conhecia tanto de técnica que adverte: “Peço desculpas aos meus leitores por lhes oferecer desta vez apenas uma novela em vez do Diário em sua forma habitual. Mas esta novela me tomou a maior parte do mês. Em todo caso, peço condescendência aos leitores.” O Diário, na forma como era apresesntado na época, tratava-se de uma espécie de jornal, onde o autor refletia as questões do cotidiano. Naquele espaço Dostoiévski discutia seus sonhos, suas ambições, seus projetos, ao lado dos fatos jornalísticos — se assim se pode falar.

 

Ele próprio usa a palavra técnica, quando se refere Victor Hugo. E justifica a técnica usada em Uma criatura dócil.