Se há uma escritor acuja obra exige mais do que conhecimentos da arte, da construção ou do artesanato de uma obra literária para analisá-la, esta escritora, sem dúvida alguma, chama-se Virginia Woolf. Até porque sua escrita não nasce da necessidade de renovar ou de explorar circunstâncias tradicionais. Sua poética é resultado de exigências psicológicas, daquilo que a imaginação exige no momento da criação, de sua estranhas forças internas. É o que acontece, por exemplo, com As ondas. Uma novela? Um romance? Uma exposição de motivos?
A escritora inglesa é uma das grandes reformadoras universais da prosa, a partir do início do século 20, ao lado de James Joyce e de Proust, se for o caso. Mas ela reformou de acordo com sua personalidade, e não conforme as técnicas novelísticas, experimentalistas ou de vanguarda. Não que ela quisesse apenas mudar, mas as mudanças estavam no sangue, nos nervos, no caráter. Na sua formação, atingida por muitos acontecimentos que interferiram profundamente no comportamento e, portanto, na escrita. Uma escritora feita de nervos, por assim dizer.
No romance, por exemplo, o enredo, os fatos, a linearidade dos acontecimentos, a constituição dos episódios não parecem importantes ou fundamentais. Interessa vislumbrar, interpretar ou analisar o que os acontecimentos podem provocar na personalidade dos personagens, nos grupos sociais, nas pessoas, na atuação de todos eles. Até porque Virginia está nos personagens, na sua sensibilidade e não apenas no texto ou na história. Uma pergunta: o que é a história na novelística de Virginia Woolf? Nela, o enredo, ou a história, é uma espécie de roteiro sutil, muito leve e insinuante daquilo que a sensibilidade absorve ou revela para a construção daquilo que se convencionou chamar de romance, novela ou crônica.Sabe-se, ainda, que ela teve uma vida conduzida pelos nervos, pela sensibibilidade, pelo sentimento de dor e de angústia, senão de medo.Poucos ou raros momentos de alegria ou de felicidade, sempre a imersão no sofrimento e na agonia ou no prazer — se é que se pode falar em prazer na relação com Virgínia.
Autor de uma extensa, densa e detalhada biografia da autora inglesa, Quentin Bell, seu primo, vai buscar na genealogia da família uma interretação não só da vida, mas sobretudo da sensibilidade de Vigínia. Porque a sensibilidade nela é algo tão fundamental, tão decisivo e tão inquietante que parece sustentar-se para além das próprias forças físicas.
Talvez o romance — seria mesmo um romance? — As ondas seja a chave ou uma das chaves, ao lado de O farol — de entrada para a interpretação da sua obra e, mais do que da obra, da própria vida. Esta vida tão intensa e tão aflitiva que até mesmo as palavras são inúteis para revelá-la. Até porque as ondas são os movimentos físicos e nervosos que constituem a espécie humana. Todo Ser está envolvido, parece dizer Virginia, por uma mobilização de ondas que se movem a cada instante, a cada circunstância, a cada momento para construir a existência. Muito mais do que a vida, a verdade da existência, a que se entrega material e espiritualmente todo homem. É neste sentido que se deve compreender toda a obra de Virginia Woolf. Mais do que fatos, mais do que acontecimentos, mais do que intrigas, mais a revelação sensível e tudo isso, como uma camada de choques elétricos que vão se multiplicando a cada momento.
Os monólogos dos personagens — Bernard, Jimy, Neville, Susan, Rhoda e Louis — mostram, claramente, o fundamento da criação de Virginia, a partir das sensações de todos eles, ainda que em si mesmos se mostrem isolados e perplexos perante o mundo — isolamento e perplexidade que parecem ter sido os elementos essenciais do comportamento da autora.Contam, e assim se pode contar, a vida e de cada um deles distribuídos em três grandes movimentos humanos — infância, juventude e velhice, ou amadurecimento.
Para ela, era uma espécie de ajuste de contas com a sua própria vida imersa sempre em trevas. Aliás, Quentin Bell, seu mais importante biógrafo, escreve como era a vida dela em família, sobretudo no obcuro período da infância.” Nos relatos que Virginia e Vanessa — as irmãs — deixaram desse período de suas vidas, a imagem recorrente é de trevas — casas escuras, paredes sombrias, quartos na penumbra: “E penso que com isso não mencionava apenas uma treva física, mas um deliberado cerrar das janelas para a luz espiritual. Para as crianças isso não era apenas trágico, mas caótico e irreal. Eram convocadas a sentir não simplesmente sua dor natural, mas uma emoção falsa, melodramática, insensatamente histriônica, que não conseguiam acompanhar.”
Assim, pode-se tentar compreender o mundo nebuloso e insensato de As ondas, sobretudo se pode perceber este estranho “cerrar das janelas para a vida espiritual”. Na impossibilidade de enfrentar a realidade e os fatos concretos, claro, o jeito é senti-los, apreendê-los e compreendê-los, com a sensação de que isto não se esgota nunca. Fica estabelecido, nesta leitura inquietante e bela, que a vida não é feita de dias, semanas, meses, anos, mas de ondas que se movem nas sensações da infância, da juventude e da velhice.