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Para um escritor convencional, uma festa é apenas o desfile de pessoas alegres e curiosas, mesmo quando cumprem um rito, por assim dizer, social. Para um escritor genial, porém, é o momento para avaliar o comportamento humano em todas as suas dimensões, investindo na linguagem, no tempo psicológico e no ritmo narrativo. Algo completamente revolucionário, mesmo com uma aparência comum.

 

É o caso do conto Os mortos, de James Joyce, agora publicado pela Penguim/Companhia das Letras, com primorosa tradução de Caetano Galindo, que assina também a apresentação. Antes, conhecíamos a tradução de Hamilton Trevisan, de 1970, para a edição da Civilização Brasileira, encerrando o volume de contos Dublinenses, considerado por Ênio Silveira como um “microcosmo e painel, porta de acesso por que se penetrará no universo joyciano, universo de luz e sombra, de calor humano e de fria, de quase insuportável lucidez.” É Claro que Ênio tinha — ou tem — razão. Não só pelo aspecto humano, cuja penetração é sempre emocionante e consistente — mas até pelo uso inaugural de técnicas que se tornariam mais fortes e firmes, sutis e trabalhadas ao longo do tempo.

 

É verdade que há os pequenos e breves conflitos das traduções, bastando citar, por exemplo, os detalhes do parágrafo final do conto em Trevisan e em Galindo. Parece-nos que Galindo aproxima-se mais da verdade do texto de Joyce ao trazer as aliterações que celebram o sentimento, a sensação e a suavidade da neve caindo a musicalidade.

 

Assim traduz Trevisan: “Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve a cair suave através do universo, cair brandamente — como se lhes descesse a hora final — sobre todos os vivos e todos os mortos”.

 

Correto? Sim, correto. Um belo e comovente texto. Mas Galindo compreende melhor o jogo linguístico de Joyce e substitui a palavra suave pela legítima sensação de suavidade através da aliteração e da frase, música pura. Cria mesmo a sensação de que a neve cai até no personagem e se derrama na cabeça, nos ombros e no peito do sobretudo.

 

Assim: “Desmaiava-lhe a alma enquanto ouvia no universo a neve leve que caía e que caía, leve neve, como pouso de seu fim definitivo, sobre todos os vivos e todos os mortos”.

 

A frase é completamente refeita, além de colocar a próxima frase como reforço de linguagem, dentro de travessões e não de vírgulas — para destacar o sentimento de morte do personagem, depois do desmaio da alma de forma direta — desmaiava-lhe a alma lentamente — e não indiretamente por causa do ambíguo pronome sua, como está em Trevisan — “Sua alma desmaiava lentamente”. Reparem que o sua é ambígua porque dá a sensação de falar com o leitor e do personagem. E, mais na frente, retira a palavra todos de ‘todos os mortos” para continuar com suavidade. Vejamos como fica a tradução de Galindo: “Desmaiava-lhe a alma lentamente enquanto ouvia no universo a neve leve que caía e que caía leve neve, como o pouso de seu fim definitivo, sobre todos os vivos e mortos.”

 

Observem bem o jogo das frases em Galindo — a neve leve que caía e que caía a leve neve — e retira o advérbio brandamente que, por natureza, é um advérbio agressivo, visual e ritmicamente. A frase assim ganha mais suavidade, e se aproxima mesmo da técnica de Joyce.

 

Assim pode-se perceber, com clareza, a introdução ao universo joyciano, que Trevisan — sempre um tradutor criterioso e atento — preferiu linear e, por assim dizer, burocrático. Não está errado, apenas optou por outro caminho. O ideal é que tivéssemos aqui o texto original, mas como não é possível, pelo menos, neste momento — consideramos a tradução de Galindo mais exata porque expõe o universo consagrado de Joyce, na forma conhecida por todos nós, tanto no original quanto em português. De forma que já em Dublinensespodemos encontrar os elementos que seriam largamente aplicados no Ulissese, mais tarde, esgotados no Finnegans Wake, onde o irlandês zomba da literatura tradicional, entre outras coisas. Mesmo assim, é preciso destacar que as experiências de Joyce começa em Os mortos, que os brasileiros conhecem agora em tradução exemplar.