A sugestão da quarta capa não poderia ser mais precisa e definitiva:
“A imagem de uma orelha descomunal bem poderia ser o emblema deste livro. De fato, ele parece ser o resultado de ouvido absoluto para as vozes deste mundo e, de certo modo, até do outro. O partido compositivo — tão próprio dos impasses da modernidade — de revolver nas falas mesmas a realidade social e histórica que se deposita, como sentimento na linguagem vai, aqui, a sua potência máxima”.
Exatamente isso. Um romance que não é história ou imagem, mas sons, falas, burburinhos, ironias, fotos e, não raro, palavras. Assim pode-se definir o romance As visitas que hoje estamos, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, capaz de revelar o espírito inquieto do nosso tempo. Inquieto, sofrido e desesperado. Desde o título pode-se perceber que o livro não acompanha a sintaxe tradicional, não afirma, não assegura e não conclui, espera que o leitor, e quem sabe, o crítico, compreenda a extensão do som, aquilo que é infinito, que nunca vai terminar, embora a imagem nos leve a uma espécie de espaço concreto que, no entanto, também não se realiza. Portanto, um romance sem espaço e sem tempo. Algo que, a princípio, parece impossível de se realizar.
Antonio Geraldo, porém, apostou no impossível. E conseguiu trazê-lo para as páginas deste romance — seria mesmo um romance? — que chamaria de não escrito, como parecem não escritas as cenas dos famosos comícios agrícolas de Madame Bovary, onde Flaubert pretendeu apenas ouvir vozes — através desta orelha descomunal — quando criou os diálogos entrecruzados, conforme a definição de Mário Vargas Llosa, as vozes soltas e circulares, os sons atravessados, enfim, o sutil burburinho da feira para quem se encontra em uma distância razoável. Vem daí, acredito, a inquietação de Antonio Geraldo. É um romance não escrito, mas falado, e falado, muitas vezes, sem clareza, ao sabor dos ventos e das chuvas. Não importa uma história bem cintada, bem alinhavada, entendida na que chamam bela construção de frases, embora algumas delas estejam ali, buliçosas, latejando, ardentes. Até porque muito mais forte é o som, a orelha descomunal ouvindo, ouvindo e interpretando, arrancando da luz e das sombras seus movimentos.
Antonio Geraldo não precisa das imagens corriqueiras, tradicionais, e quando precisa vai em busca de fotos irônicas e dramáticas — como aquela dos santos anônimos ou da natureza-morta — revelando uma presença risonha ou inquietante — para se realizar na interpretação. Por isso o romancista tem plena confiança no que faz, no que realiza, mesmo que a orelha não seja olho. Mas por que é que a orelha não pode ver? Os sentidos deslizam por todas as páginas. Por isso se pode dizer que, no geral e no particular, As visitas que hoje estamos não é um romance para ser apenas lido, mas para ser sentido. Para ser absorvido pelos olhos e pelos ouvidos. Para circular no sangue.
Não é por acaso que se afirma na orelha: “Em um gesto de infinita piedade, o livro recolhe o imenso vozerio e seu clamor, podem não mais pode resgatá-los nem lhes dar um destino, com uma ironia dolorida e isenta de malignidade, pode apenas endereçá-los aos Santos Anônimos, patronos de uma inacreditável capelinha, cuja imagem verídica o leitor — também ele um Santo Anônimo — encontrará ao ler este romance.”
A força da palavra em Antonio Geraldo encontra-se, por exemplo, em textos como este: “Toma, pai, não consegui dizer nada, não disse nada, desperdicei um monte de papel, bola no cesto, não consegui escrever o que queria dizer, não sei o que quero dizer, umas verdades, pelo menos, mas não deu, toma, toma, pai, você tem razão, sempre teve, eu não tenho, nunca tive, nunca tomo jeito, mesmo, que que eu sou, toma, apesar de que adivinho a sua conclusão, pra isso que eu já sei não precisava gastar tinta, nem isso aqui me sai direito, ficou assim, toma desse jeito mesmo , nem nisso aqui me saí direito, e o pior é que não posso dizer que tenho a quem puxar”.
De forma que se pode perceber, assim num repente, o quanto é forte e belo este romance de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira. Um romance para ser falado e não para ser lido. Enfim, um romance não escrito.