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Existiriam mesmo cinco razões que levam uma pessoa a ler a Ilíada em pleno século 21, com nosso erotismo superexposto e o consumismo desenfreado, a tecnologia massiva e solucionadora de todos os problemas, e a mediocridade babando no colarinho? Em princípio tomaremos o exemplo contemporâneo mais próximo de nossas conveniências, a sexual e a maravilhosa, e que resume todas as outras razões: Por amor a Helena. A linda Helena com seu corpo nu e seus encantos revelados. Nem só de Aquiles nem só dos gregos nem dos troianos, mas de todos nós. Se ela existiu ou não, pouco importa, basta o nosso afeto, ilusão ou fantasia.

 

Assim, é preciso acompanhar as convicções de Aquiles em busca deste amor desvairado que, no final de contas, é a metáfora de todos os nossos amores. Mas nem faz bem falar desta beleza de Helena, porque Aquiles é um extremado ciumento, daí a razão de sua luta. Esta seria, assim, a segunda razão para a leitura da Ilíada: não só uma epopeia, mas uma criação literária das mais importantes, o que significa ainda mais competência em Homero, já definitivo desde muito antes.

 

Teríamos ainda que apresentar uma terceira razão: A extraordinária harmonia do livro, impressionante na sua intimidade, cujo equilíbrio vem não só de sua história, mas também na criação de personagens, no desenvolvimento de enredo, na elaboração das cenas e dos cenários. Numa obra de absoluta criatividade, tudo isso tem importância fundamental, e nos leva a refletir sobre a construção de um universo literário.

 

“Nunca em cidade congraçados vivem

Ofendido e ofensor. No âmago alojas,

Pelides servo, um coração de bronze,

Por conta de uma escrava, e te ofertamos

Hoje beldades sete e mil presentes!

Bane o despeito, reverente aos lares;

Escolha dos Aquivos, tens em casa

Amicíssimos teus que mais estimas.”

 

Observe-se aí o equilíbrio entre a narrativa, a interpretação dos personagens e a força do narrador onisciente. Uma grande e extraordinária razão para se ler a Ilíada no mundo desordenado, confuso, caótico do nosso século. Uma lição para os aprendizes de escritor e um deslumbre para os leitores convencionais. Até porque as palavras parecem se unir em plena iluminação e ordem, não se tornando desnecessárias. Uma brilhante aula de Homero, se é que o escritor Homero existiu mesmo algum dia. E, se não existiu, os louvores ficam por conta de quem reuniu estas palavras até que se chegue a esta harmonia fantástica.

 

Em certo sentido, a Ilíada chega a ser mais harmônica do que a Odisseia, incluindo ainda o elemento erótico e sensual, profundamente identificador do nosso tempo, em que se ressaltam mais as qualidades do corpo do que da alma embora já esteja mais do que suficientemente provado que a alma — de certa forma o inconsciente que acolhe a libido — é que é verdadeiramente erótica. Nesse instante pensamos, por exemplo, em Adélia Prado, cuja exclamação é suficientemente conhecida: A alma é erótica. Algo que vem mesmo das civilizações antigas. Nós é que ressaltamos, com exagero, o corpo, pelo costume de materializarmos e de vulgarizarmos tudo o que nos envolve.

 

A quarta razão é de que com a Ilíada nasceria o verdadeiro romance burguês, antecipando-se em séculos a Dom Quixote, de Cervantes, capaz de interpretar as nossas complexidades e nossas mesquinharias, sobretudo, as mesquinharias, já que existimos num mundo menor, mesquinho, alimentado em quatro paredes, no segredo de cobertores e lençóis.

 

Daí concluiríamos que a mais absoluta e verdadeira razão — a quinta para voltarmos a ler a Ilíada, em meio a tantas inquietações e angústias, é que se trata de um livro moderno e contemporâneo, a revisar nossos conceitos de vida e de mundo, a nos jogar para o alto e para o grandioso, para nos recompor com os braços e a ternura de Deus.