Ao iniciar o romanceCaderno de ruminações(editora Alfaguara, Rio de Janeiro, 2012) com um instigante e duvidoso “se”, o escritor Francisco J.C. Dantas mostra, de cara, o perfeito domínio da técnica narrativa (“se não houvesse perdido a própria clínica e, dois meses adiante, não se deixasse arrebatar por Analice, a história do Dr. Otávio Benildo Rocha Venturoso seria outra”) que se torna ainda mais sólida ao longo do texto, sobretudo naquilo que chamamos de interação entre a psicologia do personagem e a montagem da história. Embora, inicialmente, o texto apresente-se na aparente terceira pessoa e no pretérito do perfeito, com passagens no presente do indicativo, o capítulo de abertura apresenta o monólogo interior do embriagado Dr. Otávio Benildo Rocha Venturoso, atormentado pelo fracasso profissional e pelo amor brutal da bela Analice.
Parece maluquice falar em monólogo numa narrativa em terceira pessoa. Só que não é uma terceira pessoa, mas uma falsa terceira pessoa porque o texto esconde a primeira pessoa que, na verdade, conta a historia. É uma técnica sofisticada e o “se” revela, certamente, o estado de embriaguês em que se encontra o personagem. E, se assim começa o capítulo, assim também termina o capítulo. Ao lado disso, há uma linguagem arcaica que, a princípio, atormentou a crítica brasileira. Mas não pode haver romance em que o personagem se distancia de sua própria linguagem. A linguagem é arcaica para um personagem arcaico, dentro de uma técnica revolucionária. Ponto para Francisco Dantas.
A mudança do tempo verbal do pretérito perfeito para o presente do indicativo ocorre, justamente, quando se fala no hábito do Dr. Rochinha de beber à noite depois de um dia de fracassos e lamentações: “Altas horas, ainda tentara sem sossego a ioga — mas não conseguia relaxar. Como último recurso, atacou o infalível Old Parr em doses agressivas, que lhe provocaram um mal-estar agravado, horas depois, em prolongada indisposição que logo desaguaria na enxaqueca costumeira (...) afinal, veio o derradeiro cochilo, do qual ele sai às braçadas numa névoa trevosa, talvez devido ao ouvido que, apertado contra a fronha do travesseiro, lhe afogava a cabeça com zumbidos. A ressaca lhe revira as entranhas.”
Destaque-se, ainda, que o jogo dos tempos verbais, possibilita as oscilações do personagens, próprias das características da embriaguês. O pretérito, pela sua própria natureza, distancia não só a narrativa, mas também a ligação entre leitor e personagem. O presente do indicativo aproxima, outra vez, o personagem do leitor e deixa a narrativa mais forte, mais nos olhos. Aí está a função dos tempos verbais e o seu segredo, de forma que se esclarece a diferença entre narrar e mostrar. Na pele do personagem, o texto mostra as suas sensações, e não só conta. O leitor vai e vem com o personagem. Até que no final o “se” retorna, de forma a intensificar a embriagues do Dr. Rocha Venturoso. Nesse sentido, observamos que o autor mantém o ritmo narrativo, mas altera os andamentos, o que é outra conquista técnica.
Quanto à linguagem, o narrador oculto, que pode ser o próprio Dr. Rochinha, em terceira pessoa, há o que já chamamos de interação. Usasse outra linguagem, Dantas estaria traindo o romance e o personagem. Daí frases como essas: “Isso com o gravame de ser um madurão celibatário, bom de ter juízo, com idade em que o calor da mocidade devia andar pacificado.” ...“Desde então em luta com as mesmas cavilações daí provenientes,Têm lhe faltado tirocínio e sangue-frio para administrar essa situação complicada.”
O segundo capítulo começa, então, com um texto firme e decidido. Substitui o indeciso ‘Se” por um presente do indicativo provocante, apesar de adversativo, e de outro “se” afirmativo. (Rochinha se demora debaixo do chuveiro, mas o conforto não lhe chega para as entranhas pisadas. E, outra vez, a linguagem vem em socorro do personagem: “ Numa palavra, tem acolhido esta cadeira e a escrivaninha como impávidas relíquias que testemunham os seus desgastes. Talvez estejam aí apenas porque por uma razão obscura teimam em consolá-lo de que alguma coisa dessa torta vida pode ser duradoura”.).
Mas acima de tudo e sobre tudo está a grandeza desse personagem elogiadamente arcaico, oscilante nas suas queixas, mas convencido de suas decisões, ao lado desta cadeira que lhe veio do bisavó, e que não é apenas um móvel, mas testemunha viva de sua passagem pelo mundo da ficção e pela vida, com certeza. A sensação de monólogo interior em falsa terceira pessoa — portanto, em primeira — consolida-se justamente no instante em que surge a cadeira, porque é aí que ocorrem as danações psicológicas de Rochinha, este personagem que “sendo um cidadão de vida limpa, de linha de conduta impecável, presumia-se que, de tanto andar dentro das regras, fosse, como é de praxe, coroado por um destino exitoso. Mesmo porque, já tendo muita estrada, chegou à faixa dos cinqüenta com um saldo bastante invejável”.
A partir do terceiro capítulo se desenvolve a atividade profissional de Rochinha até começar a derrocada, seguida da paixão avassaladora por Analice. Revela-se que, apesar de turrão e silencioso, Rochinha é extremamente vaidoso e amostrado, conforme a linguagem do personagem. E, mais do que tudo, desastrado nos negócios. Movido pelo impulso, mas silencioso em certo momento da vida, porque sempre fora barulhento. Planejara uma vida de grande êxito profissional, mas era desastrado. Até conhecer completamente a desgraça, viveu momentos delicados, mesmo quando reconhecia os dramas familiares dizendo: “o remédio para se aturar a vida é sepultar o passado.” E o passado estava sempre próximo dele, um dia depois, ou talvez menos. Porque tudo era sempre motivo de arrependimento, de remorso, de agonia. Daí pode-se afirmar que vivia cercado de mentiras e ilusões. de crenças. Isto é: daquilo que imaginava acreditar para desacreditar logo depois. Este incrível Rochinha carrega consigo ainda outros personagens — Adamastor, por exemplo — que dividem a grandeza do romance.