Quando conheci Mario Vargas Llosa estava em plena formação literária e tomei um susto. Li A casa verde, romance publicado pela Nova Fronteira. Era o tempo do “boom” da literatura latino-americana e parecia uma febre em todos os lugares. Comentava-se, discutia-se, analisava-se. Tudo na Livro Sete, que reunia intelectuais de todas as tendências – a esquerda e a direita sempre exaltadas –, ou no Departamento de Extensão Cultural, da Universidade Federal de Pernambuco, no Engenho do Meio. Embora considerado um autor de esquerda, não havia nada na obra que denunciasse essa tendência.
Meus momentos de leitura eram curtos, curtíssimos. Além de repórter do Jornal Universitário, da UFPE, era também editor local do Diario de Pernambuco e, portanto, lia fatiado: um pouco aqui, um pouco ali, sempre com o livro debaixo do braço – o famoso suvaco intelectual. Pela manhã, na universidade, quase não podia ler por causa dos debates e, à tarde, depois de distribuir as pautas com os repórteres, refugiava-me no arquivo para ler. De quando em vez saía para saber as novidades, para atender algum repórter em dificuldade, para conversar com os outros editores, para uma reunião com os fotógrafos, mas sempre com o universo de Vargas Lllosa. Assustei-me grandemente com as mudanças de tempo e de lugar, impressionavam-me os personagens.
Julguei uma ótima experiência de leitura, uma grande experiência de leitura. Mas fui tocado de forma avassaladora pelo romance Conversa na catedral, edição da Editora Francisco Alves, do Rio de Janeiro, com tradução belíssima de Olga Savary. Ali estavam todos os elementos que formariam – e formam – a literatura do atual Prêmio Nobel. Seria apenas uma conversa, uma breve conversa que, no entanto, atravessou mais de 600 páginas num cenário de arrepiar: era num boteco pomposamente chamado de “A Catedral”, e onde se reuniam para cachaçadas os pobres de Lima. Os homens pobres e sem destino.
Mas o personagem central já trazia uma pergunta escandalosa desde que saíra do jornal naquele meio-dia. Escreve o narrador:
“Da porta de ‘La Crónica’ Santiago olha a Avenida Tacna sem amor: automóveis, edifícios irregulares e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos flutuando na neblina, o meio dia cinzento. Em que momento o Peru tinha se fodido?. Os pequenos jornaleiros circulam entre carros parados pelo sinal da Avenida Wilson anunciando os jornais da tarde e ele começa a andar, lentamente, em direção à Colmena. As mãos nos bolsos, cabisbaixo, vai escoltado por transeuntes que avançam, também, em direção à Praça San Matin. Zavalita era como o Peru: tinha se fodido em certo momento. Pensa: em qual? Diante do hotel Crillón um cachorro vem lamber-lhe os pés: tomara que não esteja raivoso, fora daqui”.
O que aprendi neste breve trecho. Algumas lições valiosas: Personagem e cena, com descrição de cenário, estão integrados em si mesmo, tão bem integrados, que não se pode ver um sem topar no outro, cortados por uma mesma pergunta: o destino nacional e o destino pessoal. Uma cena de ângulo aberto com sol, calor, engarrafamentos, trânsito lento, pobres, jornaleiros e cachorros. Quantos elementos estão aí? Porque esta é uma das técnicas mais preciosas da narrativa: a integração absoluta entre os elementos e neste caso, ainda, conduzidos por um verbo no presente do indicativo. O tempo verbal é importante. Talvez o pretérito perfeito deixasse a cena solta demais e não desse a ela esse caráter de densidade e de destino. Isso chama-se estudar uma cena nos seus elementos essenciais, que só vim a compreender mais, bem mais tarde, nos mandamentos de Stephen Vizinczey. E o principal: o leitor não precisa perceber. Basta ler e observar. Essa é a base de uma cena bem escrita.
Daí em diante, o romance vai desenvolver uma técnica absolutamente requintada que conta a história do Peru e que conta a história do personagem, dos amigos, dos companheiros, das gentes, com mudança de tempos e espaços mas sem perder a temática. Foi aí que aprendi outra lição essencial: a mudança – ou alternância – de tempos só deve ser feita através da temática, mesmo que a temática esteja entranhada no personagem. Por isso, mais uma lição: o personagem não é apenas um ser, é uma metáfora, é um destino, é um caminho, somente assim a obra ganha a densidade necessária, ainda que seja um “Dom Quixote”.
Mas se eu estou aprendendo com Mario Vargas Llosa, com quem ele aprendeu? É simples: O atual Prêmio Nobel de Literatura aprendeu tudo isso e inventou muito mais com Gustave Flaubert, a quem dedicou seus estudos teóricos, e que resultou no mínimo em A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary. Por quê? Por que para o escritor francês, escrever era uma orgia perpétua – trabalho e alegria, trabalho e alegria, trabalho e alegria. E gozo. O gozo daqueles que trabalham com a sensação de que estão mudando o destino do mundo. O próprio Vargas Llosa fez isso o tempo todo, por isso tem uma obra tão densa quanto grandiosa.
E mais outra lição: o personagem não precisa de aspas para pensar ou falar. Pensamento e fala circulam livremente, de forma que não interrompe o leitor, no sentido da leitura fácil e sofisticada. Prestem atenção: “Tomara que não esteja raivoso, fora daqui”. Bem claro: Tomara que não esteja raivoso (pensamento), fora daqui (fala). Simples, bem simples, não é? Mas não tão simples para nós brasileiros que costumamos abusar dos sinais – vírgulas, ponto e vírgulas, parênteses, aspas, e sobretudo, adversativas e conjunções. São as sutilezas de um texto literário que precisam ser aprendidas, estudadas e inventadas, para que a criação seja superior. Sem dúvida alguma.
E onde aparece a resposta para a pergunta: “Em qual?” Estão lembrados? Em que momento ele se perdeu? A continuidade do texto, e uma busca de resposta, está na décima quarta página: “Ele tinha estado na Universidade e podia escrever editoriais, não é, Zavalita? Pensa: Foi aí que me perdi”. Essa pergunta vai se desdobrando, vai se desdobrando, e, na verdade, trazendo a história do Peru, por que é assim: “Onde o Peru se perdeu”. A obra circula entre tempo e espaço, desdobrando a pergunta, a busca de respostas, num trabalho artesanal incessante. E se for preciso estender muito mais, o mesmo tema está, por exemplo, nas páginas 114, 118, e daí por diante.
Além do mais, “A Catedral” que está no título é, na verdade, uma ironia – não passa de um bar pobre, decadente, onde se reúnem os excluídos da sociedade, e que é uma metáfora do próprio Peru, com seus pobres, miseráveis e profetas. Nesse sentido aprendi muito, aprendi demais. Aprendi, sim, com Mario Vargas Llosa, Flaubert e Ariano Suassuna. Com cada um tive lições preciosas, Deus foi – é – sempre o meu amigo e, é claro, que, com Ele, aprendo muito mais. Muito, muito mais.