Entenda o truque perfeito para distrair o leitor do rigor da narrativa ficcional

O escritor precisa sempre acreditar: nenhuma lei lhe pode ser imposta, nenhuma regra e, claro, nenhum regulamento. O estudo da técnica, todavia, torna o artista consciente, e não serve para ser copiado. Mas um romance, por exemplo, pode ter dois caminhos seguros, que favorecem a crítica do próprio trabalho. São eles: digressão e comentário. Pode parecer, mas não são a mesma coisa. Na digressão, o narrador se afasta do objeto central; no comentário, o mesmo narrador não larga o objeto central.

Compreendo que escrever uma digressão não é tarefa fácil. No entanto, percebe-se logo que ela pode e deve ser usada quando for necessário seduzir ainda mais o leitor, sobretudo com relação a enredos ou com relação a mudanças de enredo, ou técnicas mais sofisticadas. Machado de Assis era mestre nesta arte, que aprendeu com Lawrence Sterne e não esqueceu mais. No entanto, o que é uma digressão? E para que serve?

Sempre assim: no momento em que for preciso distrair o leitor para que ele não acompanhe o rigor da narrativa, a digressão precisa ser realizada, da mesma forma que fazemos com as pessoas quando pretendemos surpreendê-las. Para exemplos, vamos recorrer aos meninos, que são mais hábeis no destino narrativo. E refletimos sem gravidade. O menino da história e o menino de Clarice Lispector.Só uma brincadeira infantil, que ajuda a refletir, sem forçar. Vamos ver:

– Eu quero uma mordida neste doce.

– Não dou.

– Veja como a torre da igreja está brilhando.

– Onde?– Veja com cuidado.

– Não consigo.– Ah, você não sabe olhar.

– Ih, cadê meu doce?– O gato comeu.

O que aconteceu? Enquanto distraímos o amigo, aí está a digressão, o doce foi roubado. Mudança de rumo ou de assunto. Não é mesmo? Certamente o outro vai olhar a torre da igreja – onde, com certeza, não está acontecendo nada – e lhe roubamos o doce. Qual o objeto principal: o doce. Não é assim? E qual é a digressão? A torre da igreja. O exemplo é ingênuo e infantil, concordo. Mas creio eficiente.Assim podemos, então, trabalhar a digressão:

Objeto principal:

– Eu quero uma mordida neste doce.

– Não dou.Digressão:

– Veja como a torre da igreja está brilhando.

– Onde?

– Veja com cuidado.

– Não consigo

– Ah, você não sabe olhar.Objeto principal:

– Ih, cadê meu doce.

– O gato comeu.

Não é mais do que isso. Em princípio, com essa tranquilidade. É claro que coloquei diálogos, mas se há uma narrativa, então é preciso escrever da seguinte maneira:

O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido. Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com muito cuidado. O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.

Agora o desenvolvimento, mais uma vez:

Objeto principal:

O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido.

Digressão:

Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com cuidado.

Objeto principal:

O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.

Digressão é isso: desvio da atenção pela mudança de rumo ou de assunto, dependendo da função e do efeito.

Vejam o que diz Houaiss sobre o assunto: “Desvio do assunto principal ou de rumo”.

 

EXERCÍCIOS

Em princípio copie, copie mesmo, copie o diálogo. Divida em partes: objeto principal, digressão, objeto principal. Agora copie, copie mesmo, a narrativa. Divida em partes: objeto principal, digressão, objeto principal. Isso não é gratuito, é fundamental. Não se entende apenas com a mente, mas com a escrita. Repita. Memorize. Repita. Memorize. Escreva, escreva, escreva. Vamos a um exercício. As palavras do objeto principal são de Clarice Lispector. De propósito, inventei a digressão.

 

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. muita gente nas calçadas e os vendedores gritando, misturando-se um com os outros, pregando as delícias das prendas, e aquele menino sozinho encostado no poste. Um ar desvalido, de abandonado. Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

 

Agora invente a sua digressão, tomando como base o movimento dos carros na outra rua:

 

Objeto principal:Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.

 

Digressão: ___________________________

 

Objeto principal:Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

 

Então vamos a outro exercício, com invenção livre na digressão – ou seja, não copie o texto de Clarice mas invente outro:

 

Objeto principal:Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.

 

Digressão: ___________________________

 

Objeto principal:Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.

 

Estes exercícios são fundamentais. Não adianta apenas dizer: compreendi, entendi - tem que fazer. Se possível, repetir, repetir e repetir. Até considerar o domínio do texto.