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Ariano está de volta. Ou melhor: nunca partiu. Tudo porque vão chegar às livrarias, em julho, os livros inéditos que deixou – entre eles Dom Pantero no palco dos pecadores e O jumento sedutor –, escritos durante mais de30 anos e que se revestem da continuidade da sua vida porque imortais. São obras que estiveram com ele todos os dias, escrevendo e reescrevendo, numa atividade que cobriu uma existência.

Mas não se pense numa narrativa convencional, com enredo comum e personagens que já conhecemos na literatura universal. É muito, muito mais do que isso, englobando: história, filosofia, teatro, poesia, ficção, delírio e apocalipse. Por isso mesmo digo, no prefácio que escrevi a seu pedido: “Este livro é uma revelação”. Ele me havia enviado os originais em pastas vermelhas, altas, reunindo centenas de folhas de papéis. Antecedera um pedido que me fizera, através do poeta Samarone Lima, para que me dedicasse alguns dias a examinar sua obra inédita na qual trabalhara 30 anos.

Devo dizer que, inicialmente, me assustei muito. Não eram a rigor narrativa que costumamos ler em outros autores. Em verdade, eram delírios, visões, antecipações, reflexões, intercalados por poemas, discursos. E ali, diante dos meus olhos, desfilavam imagens que nunca vira antes. Além do mais, Ariano era muito cuidadoso e só nos mostrava o que estava realmente finalizado, embora eu tenha me acostumado a ouvir dele, inúmeras versões, passando e repassando a sua própria obra.

Fiquei atônito e me perguntava constantemente: afinal, o que é isso? Para onde Ariano está nos levando e levando a própria obra? Uma coisa é certa: como ficará o leitor diante de tudo isso? Não há um enredo – se pensarmos em todo tipo de enredo que conhecemos até então. Nem mesmo no monólogo ou no fluxo da consciência que conhecemos radicalmente em Joyce. Para surpresa de todos nós, Ariano suplanta mesmo as experiências mais radicais de Joyce, sem perder de vista as reflexões sobre o comportamento humano.

Nessa obra póstuma, está contida a mais profunda reflexão do grande escritor brasileiro sobre o destino do homem na terra, devastando o que há mais de singular e inquietante. O narrador ora é alguém contido e silencioso em meio a imagens e visões; ora um palhaço que solta sua voz para alertar a humanidade para os seus caminhos; ora é um poeta que recorre aos seus amigos-personagens para recitais, poemas, baladas, odes, visões.

É uma obra extremamente complexa, que reúne, ainda, um lento e laborioso trabalho de artista plástico, uma característica imensamente cara ao próprio Ariano, que se considerava antes de tudo, isto sim, um artista plástico. Sempre desenhou, sempre pintou. Construiu obras que já apareceram em O romance d’A Pedra do Reino, por exemplo.

Uma das características mais decisivas da obra deste autor é a reunião, numa só página, do narrador, do poeta, do artista plástico e do filósofo. Uma técnica, por assim dizer, que Ariano perseguiu a vida inteira e a que se dedicou completamente com uma disciplina comovente, escrevendo todos os dias, sem descanso. Somente a dança ficou de fora, mesmo assim, se quisermos os personagens em carne e osso, ela está aí no balé das palavras, das canções e dos movimentos. Não são necessárias partituras nem bailarinos – estão todos aí movidos pelas palavras e pelas frases do genial criador.

Citei, no prefácio às obras, o crítico inglês Percy Lubbock, que afirmou que Tolstói escreveu Guerra e paz com as duas mãos. A direita para as cenas de batalhas e guerras e a esquerda para os dramas familiares. Ariano, porém, foi mais longe ao usar em duas obras, os músculos e os nervos, a pele e o sangue, toda a vida, todo o corpo. O próprio Ariano destacou muito esta opinião, ainda em outra conversa na minha casa, com o testemunho de Samarone.

Sim, usou todo o corpo, porque ele sempre se jogou inteiro na sua missão intelectual. Missão no sentido mais rigoroso, porque era assim que compreendia a arte. A arte como missão de vida e de comportamento. A arte como uma missão superior, acima de qualquer outro questionamento.

Acima de tudo, a arte como tarefa de salvação do humano. Como um pacto entre o homem e Deus ,para tornar a vida mais suportável e mais justa. Foi assim que ele viveu e escreveu, tornando possível, entre a Terra e o Céu, a construção da vida e da eternidade.

Por isso mesmo, o trabalho artístico de Ariano era ritualístico: acordar cedo, muito cedo e, depois do banho, trancava-se na biblioteca para escrever numa mesa grande, repleta de papéis e canetas coloridas. Escrevia uma cena e, em seguida, desenhava-a, quase sempre marcada de gotas de sangue, que era uma espécie de marca registrada de sua obra de artista plástico. Sempre vestido de branco, numa postura que lembrava muito Tolstói, um dos seus ícones literários.

Assim, o Brasil conhecerá agora este grande autor por inteiro, cujo devotamento à arte tornou possível o encontro do Homem com a divindade.