Carrero DEZ A

Uma constatação inevitável: a morte de um artista possibilita um olhar panorâmico sobre sua obra, sobretudo quando o desenlace ainda esteve em pleno processo criativo. É o que acontece com o sergipano Antonio Carlos Viana (1944-2016), morto em meados de outubro e contemplado com o Prêmio Jabuti 2016 In memoriam. Nada mais justo e mais correto. Até porque, apesar da grandeza de sua obra, Viana foi um dos escritores mais silenciados do Brasil, visto até com certa reserva por círculos literários brasileiros. Quieto e silencioso, Viana nunca reagiu, embora sempre destacado por estudiosos responsáveis.

Para que se faça uma breve reflexão sobre Viana, é inevitável traçar um paralelo entre ele e autores emblemáticos do nosso tempo, de modo a facilitar a compreensão do leitor. Escolho, assim, o contraste e as diferenças radicais e, é claro, as aproximações entre ele e Faulkner, por exemplo.

Para enfrentar o indecifrável e sinuoso comportamento humano, o norte-americano William Faulkner criou um estilo áspero e severo, culminando com o romance O som e a fúria, narrado por um excepcional com uma linguagem incrivelmente cruel e visceral que se aproxima da alma por imagens grotescas, como o som arrancado de uma serra na madeira, cortando o coração da tarde em algum condado do sul dos Estados Unidos. Tudo isso aparece também em Enquanto agonizo, marco da literatura norte-americana no Século XX.

Em contraponto, silencioso e elegante, o sergipano Antonio Carlos Viana construiu também uma obra inquietante, em que a condição humana é sacudida por uma linguagem precisa, humilde e simples, mais próxima de um Stendhal do que de um Faulkner, com a naturalidade de água que escorre límpida na garganta.

Isso mesmo, Viana escrevia com a humildade que dispensa a vaidade dos adjetivos e a eloquência dos advérbios, sobretudo dos advérbios de modo terminados em “mente”, usados até o abuso por escritores que não confiam nas palavras, nas frases, nas orações, nas cenas. Mesmo assim, é atormentador o conto O dia em que meu pai enlouqueceu. Conta a história de um homem que enlouquece aos olhos do filho, mesmo em narrativa às vezes indireta, às vezes direta. Tudo porque o sergipano prefere colocar a tônica das histórias nos personagens, e não apenas na linguagem. Falar em fúria do comportamento humano em Viana parece inadequado, sobretudo por esse estilo cercado de cuidados e de atenção, zeloso de cada vírgula e de cada ponto, de cada cena e de cada cenário, mas seus personagens estão cheios de força e de determinação, insólitos à sua maneira, como aquele menino que trabalha na feira para juntar dinheiro e gastá-lo com a cafetina do cabaré da cidade, de quem os irmão falam maravilhas. É extremamente inquietante o momento em que os dois se encontram num quarto da casa humilde da zona, com a cafetina alegando dores porque arrancara um dente há pouco tempo. Mesmo assim eles vão para a cama, entres dores e sangramentos a mulher descobre, um tanto envergonhada, que o menino é potencialmente belo e forte no ato sexual. Um ser que dará muitos prazeres às mulheres. Aquele menino, inexpressivo, que catava moedas na feira, transforma-se em alguém que pode causar sonhos e delírios. Assim, a fúria do comportamento humano atravessa o sangue e a alma da criança, para se instalar mundo feminino pela dor e pelo prazer.

O universo literário do sergipano alcança grandes e notáveis resultados porque em princípio parece brejeiro e simples através dessa linguagem humilde, que engana por um suposto tom comum, mas que se mostra cada vez mais definitivoa e forte quanto se percebe essa informação dos personagens. Em Viana, a aparência se transforma em vivência porque o ser humano não é apenas um menino juntando dinheiro com os trocados da feira, mas justamente é essa metáfora de que o homem faz irromper a glória e a conquista através do simples e do comum.

Quando comecei este artigo, lembrei a obra de Faulkner e de Viana, que parecem distantes e incompatíveis, mas basta aproximar a lente, num exame mais detalhado, para se verificar que estão ali a inocência e os tormentos de toda a humanidade. Dos dois se pode dizer o mesmo que Hermilo Borba Filho: ‘Mas acontece que, se o sofrimento não passou, se justamente continuou senão para o homem que o cantou, ao menos para aquele que sabe cantar”.

Para estabelecer a força dos seus personagens – em geral, suas personagens –, Viana dá a ele nomes exóticos e insólitos, como dona Normélia, dona Katucha e dona Reina - cujo nome deveria ser dona Regina, mas o escrivão esqueceu o g, que depois ela ‘encontrou no escuro do corpo’”. E não faltam os solitários, os vazios, os que sofrem a decepção do amor, e, sobretudo, as decepções do sexo.

Além do envelhecimento, vale ressaltar. Destaque para a importância dos personagens envelhecidos, tocados pela solidão, pelos achaques e pelas dores de toda ordem. O que faz lembrar a máxima popular brasileira, para a qual “se um homem tem mais de sessenta nos e acorda sem dores, esteja certo de que morreu.”É que os velhos sempre têm algum tipo de dor.

Feita uma avaliação pós-morte da obra de Antonio Carlos Viana, assim, podemos dizer que ele realizou uma obra intensamente bela através de um mundo de pequenas glórias, frustrações e angústias. Colocando-se entre os prosadores mais notáveis da literatura brasileira, de qualquer tempo ou de qualquer geração.