Autor de uma obra densa, o escritor pernambucano Gilvan Lemos sempre privilegiou o perfil psicológico dos personagens, que aparecem sempre envolvidos na atmosfera das histórias, cercadas de melancolia e aflição. Veja-se, por exemplo, seu romance de estreia, Noturno sem música —, que chega às livrarias em nova edição da Cepe justamente quando completa 60 anos de lançamento. Seu protagonista, Jonas, carrega o drama interior convivendo com personagens que, na maioria das vezes, não se dão conta de sua inquietação.
Percebe-se logo nas primeiras palavras a atmosfera cinza de angústia e aflição, em que nada se afirma, mas que o leitor percebe perfeitamente:
“Repus a xícara vazia sobre a mesa. Marta pediu licença e foi à cozinha, Raimundo acendeu o cigarro. O relógio da parede enchia a sala com seu tique-taque constante. Evitei o mostrador de númerosromanos (“Esse relógio pertenceu a meu avô”), mas o silêncio da noite, a pachorra de Raimundo e o gato que dormia enrodilhado na cadeira encheram-me de inquietude. E compreendi, constrangido, que devia me retirar. Esperei, no entanto, que Marta reaparecesse. Lá da cozinha chegava-nos o ruído que ela fazia, ocupada em alguma coisa. Raimundo tinha as pálpebras pesadas, escorou o queixo com a mão. O cigarro despontava dos seus dedos, fugindo em espirais. Vasculhei a memória à procura de assunto para tirar Raimundo de sua sonolência. Meu coração batia apressado, impedindo-me de qualquer raciocínio. Voltei-me para o gato num interesse súbito e improfícuo. Raimundo não se mexeu do lugar.
“Por que Marta demorava tanto? Receei partir na sua ausência. Raimundo já não se dominava. Seus cochilos eram cada vez mais longos.”
Para apresentar essa atmosfera de melancolia e aflição, típica do adolescente tímido e apaixonado, o escritor nada diz. Apenas mostra a devastadora inquietação num parágrafo longo, para depois criar um novo parágrafo somente quando Jonas revela — semelhante a uma respiração — que Marta demora. Então, o leitor percebe a causa de tanta inquietação. A imensa qualidade do texto está justamente neste jogo de sutilizas: Jonas angustiado, com a respiração presa, a observar os movimentos da casa de silêncio perturbado pelo tique-taque do relógio e pelos movimentos de Marta na cozinha.
Consciência narrativa de grande narrador que não diz em nenhum momento que ama Marta. E nós nem sequer sabemos o seu nome, que se apresenta de forma leve e suave, embora tenso; é o narrador em primeira pessoa sob o comando de um Gilvan Lemos estrategista e técnico, mesmo quando proclamava que não dava atenção à técnica.
É assim que se escreve um romance com a habilidade de quem conhece o espírito humano e suas inevitáveis desolações. Não basta querer escrever; é preciso enfrentar a turbulência do humano, movido pela paixão e pelo conhecimento.
Mais adiante, o escritor trabalha aquilo que Flaubert chamava de “personagens em oposição”. O narrador não questiona aspectos físicos de Marta, já reconhecida como uma “linda mulher” pelo leitor, mas vê com desprezo a mão de Raimundo, que é o marido dela: “Senti prazer em lhe apertar a mão larga e morna, que decerto afagava Marta. E o portão de ferro fechou-se às minhas costas. Desci o degrau com o coração angustiado. Retardei as passadas. Era doloroso afastar-me daquela casa. Pressenti Raimundo a percorrer o alpendre., pressionar as janelas fechadas, apagar a luz do terraço e depois entrar. Aí estanquei. Agora Raimundo estava sozinho com Marta. Ela já estaria deitada? Raimundo passaria em revista as trancas das portas, apagaria as luzes da sala e iria para o quarto. Marta, sentada na sala, sem dúvida rezava. E eu imaginava Raimundo despindo-se na sua vista, deitando-se a seu lado…”
É fundamental registrar aqui a função do “condicional”, que transforma em leveza uma cena forte, dramática e tensa, quando o personagem já parece exaurido, cansado. O criador de narrativas não pode esquecer nunca a função dos tempos verbais. Este caso de Noturno sem música é exemplar: um livro que se mostra profundamente renovador, quando, aparentemente, é tradicional.