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Todos nós gostamos de ler romances, novelas e contos. Os personagens costumam seduzir, impressionar ou irritar. Quase sempre são eles que provocam nossas alegrias ou tristezas. Até porque é também através deles que os escritores encontram as melhores cenas, as melhores frases, as sequências mais notáveis. Quase sempre se pode dizer que sem personagens exemplares é impossível escrever uma boa ficção.

Eles são tão importantes que os seus nomes, em geral, eternizam grandes obras e seus autores: Madame Bovary, de Flaubert; Pai Goriot, de Balzac; Dom Quixote, de Cervantes... Todos marcados por essas figuras magníficas.

Há teorias que afirmam que o personagem não é importante. O noveau roman é assim. Basta uma espécie linear e fantasmagórica passear pelas páginas, sem alma e sem vida. A linguagem é o que importa. No Brasil, Graciliano Ramos deixou sem nomes os meninos da família em Vidas secas, e Osman Lins tratou alguns personagens de Avalovara apenas com sinais, Kafka chamou de K. o seu personagem mais significativo, além de outros atores com personagens menos importantes.

Mas, afinal, o que é um personagem? Um personagem é a corporificação das ideias do escritor, da visão de mundo, das suas preocupações a respeito do comportamento humano. Não é um ser humano, não é uma pessoa, um homem ou uma mulher. É apenas – será apenas mesmo? – o representante físico, por assim dizer, daquilo que se pensa do mundo e que se questiona.

É, repito, a representação viva das ideias do criador literário. Daí porque todo personagem é o que o escritor tem de mais sério e mais importante para transmitir nas obras – romances, novelas, contos. Até porque é impossível ser escritor sem essa visão do mundo, da compreensão do universo, do ponto de vista essencial – do risível, do trágico e do dramático -, elas estão no personagem que, afinal, é o centro da criação intelectual.

Podemos imaginar que o personagem nasce aleatoriamente porque parece com pessoas que conhecemos – uma amiga, um tio, uma tia, um parente próximo ou distante – e porque nos impressiona com suas histórias. Eles só têm alguma significação, porém, se representam nossas ideias, se corporificam a nossa visão do mundo, o nosso ponto de vista. É por isso que são escolhidos e surgem nas páginas dos livros.

Não se trata, todavia, de romances, novelas ou ficções de tese, de ideias, tal como acontece, por exemplo, com Sartre e Camus. Eles escreveram romances para popularizar e provar, na prática, suas ideias. Um criador literário, um verdadeiro criador não quer provar nada, mas apenas apresentar, e, quem sabe, colocar na vitrine as suas ideias – que, a rigor, podem nem ser sólidas ideias filosóficas. Se satisfazem com os sonhos, com a ilusão, com a fantasia, que é a forma de um ficcionista pensar. Pensam com suas histórias, com seus personagens. Por isso, as obras de ficção são, em geral, cartas que escrevem ao mundo pedindo socorro ou revelando as inquietações.

Nem sempre é fácil encontrar o personagem ideal. Lembro-me, perfeitamente, enquanto escrevia Minha alma é irmã de Deus, da dificuldade para colocar Camila, minha personagem, na página. Quem era Camila? Como concretizá-la na minha obra? De repente, na manhã do dia 9 de abril de 2009, abri o Diario de Pernambuco e vi os olhos de uma menina-prostituta me atormentando. Percebi logo: era Camila, e tratei logo de recortar a imagem, que guardei num álbum. Fiz algumas anotações e reli a matéria – que falava de uma criança que fora prostituída aos nove anos de idade e que vivia, agora, com um caminhoneiro na beira da estrada. A matéria trazia, também, uma entrevista com uma garota, o que significava que eu tinha o fato e a psicologia da personagem, mas ela só me servia porque fazia parte das minhas preocupações sobre o mundo contemporâneo, do meu ponto de vista. É claro que estava em jogo, também, uma série de condicionantes psicológicas que não pude mais identificar. Camila ganhava corpo e começava a caminhar. Mas nem todas as personagens nascem assim. Algumas, a maioria, na verdade, nunca vão ter uma foto. No entanto, vão estar sempre ao nosso lado porque são nossos amigos, amigas, vizinhos, irmãos, irmãs. Todos. Enfim.