O tempo literário é uma técnica permanente na obra de Luiz Ruffato, cujo romance recente, De mim já nem se lembra mais, chega ao leitor com a força de um escritor que se renova sem perder o contato com os seus temas mais caros. Nele, o tempo ocupa um espaço vigoroso, pesando mais do que encantando, sem que o leitor seja forçado a acompanhar discursos eloquentes e enfadonhos. Ele, o tempo, está ali na prosa densa sem drama, carregada de lembranças e sentimentos, de situações e consequências.
Para realizar esta técnica, Ruffato cria uma “narrativa de fora”, que contempla mais do que conta, através de cartas dolorosas, inquietantes, sofridas, para além do convencional, como se viessem de um tempo distante, sopradas pelo vento e não só pelas palavras. Tudo isso porque as cartas são testemunhos e confissões, não exatamente histórias, naquele sentido literário que estamos acostumados a ler.
Uma cena e mais uma cena e outra cena – assim acontece nos romances, novelas e contos. Às vezes, cenas e mais cenas cortadas por um diálogo ou por um cenário, uma digressão ou um monólogo. Nada disso. Os acontecimentos pulam para o primeiro plano, mas estão na memória ou, quem sabe, nas lembranças. Não chegam a criar um elo de dramaticidade., Nem precisa. A técnica de Ruffato é assim mesmo: deixa que Célio se lastime e se engrandeça, registre, ressalte ou negue, construindo essa passagem do ser humano pelos dias.
Ruffato criou uma linguagem epistolar que questiona sem perguntar, com um detalhe magnífico: nem tem resposta. Querer a resposta, ele quer. Sem dúvida. Mas ela está nele e com ele, ninguém poderá entender essa inquietação: nem mesmo a mãe de Célio, a quem são dirigidas as cartas. Assim é que as cartas, cheias de sentimentos dolorosos, lembram crônicas domingueiras, de quem lê o jornal do domingo somente para soluçar. A nostalgia dos líricos, meu Deus! E dos românticos, claro. Mesmo assim, as cartas são também cartas de baralho, que vão desmontando o destino e criando outros destinos, feito quem confia a vida a uma cartomante. A uma cigana, sem dúvida.
É assim que leio os romances deste escritor que consolida seu nome na literatura brasileira com uma obra exemplar. Como a leitura de cartas-crônicas nas mãos de uma cartomante que narra o passado – se é verdade que há passado aí. Um passado que revela o futuro. Vejam como a imagem é forte: embora as cartas falem do passado/presente de Célio, o que elas mostram é o futuro. O tempo tríbio, na expressão de Gilberto Freyre. Até porque a carta conta o presente de José Célio que, para a mãe – querida mãe, querido pai –, já é passado, alimentando o futuro, que nos virá – a nós, leitores, na próxima carta. É assim que o tempo se manifesta na obra de Ruffato Em relação ao protagonista, ele também deixa de ser José Célio para tornar-se Célio ou ainda seu filho Célio. Técnicas de aproximação e distanciamento que representam mais do que dizem. Pode-se afirmar, com certeza, que Célio é mais íntimo do que José Célio. Concordo e não discuto. Mas é por isso mesmo, que o filho se desarma diante dos pais. Apenas uma variante do que foi dito antes.
Perceba-se, também, o tratamento: no princípio, querida mãe, querido pai; em seguida, querida mãe; por fim, apenas mãe. E o personagem deixa de ser José Célio para se transformar em Célio. Mais do que uma questão psicanalítica – deixo de falar em psicanálise porque sou um escritor, não entendo nada de psicanalise e posso dizer besteira -, uma técnica literária. Na técnica literária, o filho não perde o sentimento filial mas se distancia. Fala ou escreve com menos cerimônia porque já está contaminado pela ausência, pela distância.
O espaço que o tempo ocupa para Ruffato
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- Categoria: Raimundo Carrero