8 9 Carrero ABR A

“Quando me encontrava na metade do caminho de minha vida me vi perdido numa selva escura”
Dante

Não falo de Tarzan nem do Fantasma, nem da selva intrigante e intrigada, sombria, perigosa, cheia de bichos e de animais peçonhentos, cheia de armadilhas, mas desta outra selva, com muita coisa de Dante, igualmente intrigante e intrigada, perigosa, cheia de homens e mulheres, reis e rainhas, assassinos e assassinados, torturas e torturados, que se chama a Vida, povoada pela raça humana e do seu principal intérprete: Shakespeare, que morreu há 400 anos, em abril de 1616. São, portanto, mais 400 anos de vida. Sim, de vida, porque um artista não morre, perde o corpo, perde a forma física, deixa de representar, considerando que a vida é representação, mas permanece viva a sua alma, que é a sua obra, seu pensamento.

Todos os dias, todos os meses, todos os anos lemos novas traduções de Shakespeare, novas interpretações e novas montagens, como se ele estivesse vivo, novo e mais do que novo, renovado. Ora pop, ora tradicional, ora punk, ora religioso, ora materialista. Eis Shakespeare a todo instante. No tempo e para o tempo. Eterno. Toda as noites conversa com a plateia, conversa conosco. E o seu possível está nos jornais, nos blogues, nos sites, na televisão – “eus” na vida, na mais absoluta plenitude.

Por tudo isso é que o bardo inglês é chamado – Harold Bloom à frente – de “criador do humano”. Na sua obra, o homem está submetido aos conflitos de forma direta e imediata, sem restrições, sobretudo porque no palco as traições, as dores, as inimizades, as intrigas, os duelos se realizam de forma incisiva, corporificadas através de atores e atrizes diante dos olhos dos espectadores, sem mediação de narradores, ainda que eles não existam na contemporaneidade. É verdade que, em outros tempos, atores e atrizes assumiam papéis de narradores em substituição ao diretor e ao autor e até conversavam com a plateia, em reflexões e até em marcações de cena. Mas Shakespeare sempre foi direto e incisivo, com um texto de altíssima qualidade literária. De maneira que sempre influenciou muito os ficcionistas, em geral, e teatro não é literatura. É preciso destacar, porém, que a linguagem literária é muitíssimo diferente da linguagem teatral – que se aproxima muito do coloquial, pela sua natureza. Equívoco grave é tornar literária a linguagem teatral. Fica feia, ruim, artificial – sobretudo artificial.

Mesmo assim, quem não se lembra do monólogo de Hamlet, cujas primeiras palavras foram vulgarizadas, de tanto repetidas: “Ser ou não ser: eis a questão”. O cinema norte-americano repetiu-a até a exaustão, e os jornalistas panfletários e medíocres reescreviam em quase todos os artigos, para demonstrar algum tipo de erudição. E outra frase sua passou a ser repetida sempre pelos políticos e pelos colunistas políticos: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Suas frases, enfim, estão registradas em todos os lares – lar é uma coisa sempre muito feia -, em todos os motéis, em todos os bares, em todos os cadernos de adolescentes, em todos os livros, onde esteja se debatendo o ser humano. Por isso, não seria estranho dizer que Shakespeare tratou de tudo e de todos os temas e paixões. Nessa selva escura de sua obra o homem está sempre fraturado, em busca de unguentos e remédios, em meio a bruxas e feiticeiras, reis e sacerdotes.

Durante quase todo o século 20, Shakespeare era representado nos picadeiros dos teatros mambembes através da peça A Louca do Jardim, que é também uma versão popular e não menos mambembe de Otelo, que também tem sua outra versão erudita no clássico Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Mas, afinal , quem é esse Shakespeare, que escreveu tanto e com tanto fervor? Um homem ou vários? Diretor, ator, teatrólogo? Mulher: esposa, irmã? Tudo bem, ele nasceu em Stratfort-Upon-Avon, em 23 de abril (morreu em outro 23 de abril), e imediatamente após a adolescência começou a escrever para o teatro, formou a sua própria companhia e passou a representar pela Inglaterra afora, em povoados, vilas e cidades. Depois de sua morte, os estudiosos duvidaram de que um homem, só um homem, pudesse exercer tantas atividades e em igual competência. Procuraram então discutir que não havia um só homem chamado Shakespeare, mas muitos. Outra linhagem de pesquisadores indicava que o autor das peças teatrais era, na verdade, uma irmã dele que trabalhava no grupo.

Uma coisa é definitiva – Shakespeare, homem, vários ou mulher, é alguém que vai além do gênio. Com uma força de trabalho imensa e com uma capacidade criadora além do humano.