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Os grandes escritores costumam dar pistas sutis da poética em suas obras básicas. Não poderia ser diferente com Machado de Assis, que nos ensina a criar personagens no emblemático e sofisticado capítulo três de Dom Casmurro. O narrador começa Dom Casmurro com o caráter definido, inteiro e pronto, muda de nome, se revela numa apresentação rápida e incisiva de incrível mau humor na cena do poeta no trem, mais tarde deixa de ser Dom Casmurro para ser Bentinho e convida os outros personagens para participarem da criação de Capitu que, naquele momento, nem mesmo é Capitu, mas “a filha do Tartaruga”, uma adolescente sinuosa, sutil e sedutora. Só mais tarde, através da voz de dona Glória, nós a conhecemos, ainda que seja um enigma. Percebemos, assim, que Dom Casmurro é um velho queixoso, rabugento e cismado; depois é Bentinho bobo, seduzido e envolvido; Capitu seduz e envolve.

O diálogo a seguir mostra como é possível criar personagens, tanto Bentinho quanto Capitu, os protagonistas da obra, a partir da opinião de outros personagens, e não de Dom Casmurro. E assim nascem Bentinho e Capitu no terceiro capítulo:

“Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.
— A gente do Pádua?”

Em primeiro lugar, destaque-se aí o “estilo indireto livre”, criado por Flaubert, e que Machado conhecia pelo exercício da narrativa. De “Minha mãe quis saber” até “disse que ” a voz é do narrador, e de “a dificuldade” até “gente do Pádua”, a fala é de José Dias. Portanto, a voz do narrador e do personagem se confundem na mesma fala, como se fossem uma voz única sem qualquer sinal gráfico, com uma ligeira e quase imperceptível mudança de tom. É importante destacar as vozes porque o narrador foge de sua responsabilidade e transfere aos outros a definição dos personagens. Isso eleva, em muito, o grau de ambiguidade em Machado, tão destacada pela crítica. É ambiguidade, sim, mas como fazer? Como construir essa ambiguidade?

“— Há algum tempo estou para lhe dizer isso, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
— Não acho. Metidos nos cantos?”

Percebam: Capitu nasce sob o signo da “dificuldade”, em diálogo que a princípio é apresentado num “estilo indireto livre”, essa espécie de comentário do narrador, técnica usual em Machado de Assis sempre que os personagens ou a narrativa se encontram numa situação-limite.

O diálogo aberto, tradicional e solar continua com José Dias e Dona Glória:

“— É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos; Bentinho não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira que...; compreendo o seu gesto, a senhora não acredita em tais cálculos; parece-lhe que todos têm a alma cândida...”
“— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade: Bentinho mal tem quinze anos, Capitu fez quatorze à semana passada; são duas criançolas. Não se esqueçam que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa, daí vieram as nossas relações; Pois eu hei de crer?… Mano Cosme você que acha?”

Aí, Dona Glória, estratégia de Machado, pede a participação de Cosme na construção de Capitu e Bentinho:

“Tio Cosme respondeu com um ‘ora’ que, traduzido em vulgar, queria dizer: ‘São imaginações de José Dias; os pequenos divertem-se; eu divirto-me; onde está o gamão?’
— Sim, creio que o senhor está enganado.
— Pode ser, minha senhora. Oxalá tenha razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar...
— Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe, vou tratar de metê-lo no seminário o quanto antes.
— Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois, a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçam que um bispo presidiu a Constituinte, e que Padre Feijó governou o Império...”

DIGRESSÃO INTERROMPE TEMPO PSICOLÓGICO DO LEITOR

Coisa de gênio, o narrador suspende o ponto de vista dos personagens para jogar os protagonistas na sombra e tirar os leitores do plano linear. Adiante, o diálogo interrompe o fluxo narrativo numa verdadeira digressão. Se tio Cosme faz uma breve apreciação dos adolescentes, reforçando a ideia de personagens bem-comportados e ingênuos, o diálogo sobre políticos faz o leitor passar rápido por outro plano narrativo, sem a presença de Bentinho e Capitu. É como se houvesse um longo silêncio incômodo, para retardar a compreensão do leitor e a definição dos personagens; silêncio, aliás, preenchido por um discurso que parece desconstruir os personagens. Mesmo que seja muito rápido e aí desconstrói a narrativa.

“ — Governou com a cara dele, atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.
— Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O quero dizer é que o clero tem ainda um grande papel no Brasil.
— O que você quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem que ser padre, é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?
— É promessa, há de cumprir....
— Sei que você fez promessa... mas, uma promessa assim... Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina...
— Eu?
— Verdade que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que sabe de todos... Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas o que é isso, Mana Glória? Está chorando? Ora esta. Pois isso é coisa de lágrimas?”

A digressão é interrompida com leves e indiretos comentários sobre a promessa, envolvendo tio Cosme e dona a Glória. O capítulo termina com este breve monólogo de Bentinho/Dom Casmurro, que narra uma nova cena, mesmo sem vê-la completamente, conforme o verbo “creio”:

“Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, a emoção... Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer... Prima Justina exortava: ‘Prima Glória. Prima Glória.’ José Dias desculpava-se: ‘Se eu soubesse não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo.’”

O uso do narrador onisciente aqui é perfeito, com as vozes aspeadas. A criação de personagens, percebe-se com clareza, é feita pelos outros personagens, e não somente pelo narrador onisciente, que precisa da ajuda de muitos, e Machado de Assis escreve com notável qualidade.