O grande desafio do escritor contemporâneo é reunir com extrema qualidade os conteúdos material e literário da obra, com ênfase para o conteúdo literário, de forma a alcançar os melhores resultados estéticos. Isso quer dizer que o Belo está acima do discurso social, econômico ou político.
A história da literatura mostra esta verdade em absoluto: os autores que privilegiaram o elemento artístico tiveram os melhores resultados, enriquecendo de forma definitiva a narrativa em forma ou em prosa. A questão não é relevar a segundo plano o conteúdo material, mas qualificá-lo, sem que se torne fechado ou esotérico. Basta trabalhar com intensidade o conteúdo literário ou artístico, até porque a finalidade da obra é a Beleza.
Exemplo de obra conteudística que se transforma em obra literária de grande qualidade é o romance A resistência, de Julián Fuks, recentemente publicado pela Companhia das Letras. Trata-se do drama – ou tragédia – dos ativistas políticos argentinos que enfrentaram a ditadura militar e que tiveram seus filhos, sobretudo recém-nascidos, sequestrados e entregues a famílias desconhecidas. Algo profundamente doloroso e inquietante e, sem dúvida, tema para grandes obras. Aliás, grande obra que Fuks enfrentou e realizou com imensa qualidade. Na verdade, incontestável.
Desta maneira, o escritor paulista se aproxima muito daquelo tipo de romance do qual Thomas Mann é o principal representante: ficção com ensaísmo, ou ensaística, em que se defende um ponto de vista, por assim dizer, científico, mas considerando sempre, e de maneira radical, a qualidade literária, nem sempre observada pelo escritor – se é que é escritor mesmo – contemporâneo.
Em geral, e quase sempre em geral, privilegia-se o conteúdo material, que não é literatura, e o resultado é apenas um panfleto sem conquistas literárias. Pode ter méritos, e até grandes méritos, mas fica-se devendo à literatura. Observe-se, por exemplo o romance Abril despedaçado, de Ismail Kadaré, em que a técnica supera, em muito, a denúncia social do kanun do sangue. A pura denúncia social pode até revelar e apaixonar, mas esta não é a tarefa da literatura.
O conteúdo material – temática, denúncia, material jornalístico, fotografias, cartas, depoimentos – antecede a criação e motiva a elaboração da obra, mas somente terá a grandeza necessária quando trabalhada pelo conteúdo literário – texto, estilo, cenas, cenários, personagens, diálogos – até se transformar em obra artística, que é, enfim, o objetivo de toda obra.
Chamo a atenção, por exemplo, para este texto na página 15 do romance de Julián Fuks. Trata-se de um monólogo – o monólogo é uma técnica de discurso interior em que o personagem fala consigo mesmo de maneira linear e lógica, por considerar que tem alguém para ouvi-lo, enquanto o solilóquio é ilinear e ilógico, porque o personagem fala com ele e somente com ele, sem ouvido para escutá-lo. O estilo é denso e as frases se desdobram de forma a lembrar um eco, como apontam os críticos no estilo de Proust, por exemplo:
“Além da mágoa. Há anos observo em meu irmão, impressionado, sua capacidade de afastar prontamente os pensamentos que lhe desagradam, de interromper conversas sem brusquidão, de mudar de assunto sem se dar conta, de deslizar entre uma ideia e outra de forma quase instantânea, sem sobressalto. Vejo seu rosto se crispar por um segundo ante um vago infortúnio, alguma frase infeliz que ninguém chegou a proferir, uma ínfima sugestão ou aproximação ao que o perturba, pra logo retornar às suas feições comuns, à sua indiferença, sua neutralidade anestesiada.”
No próximo texto, porém, percebe-se como o conteúdo material aflora e assume a narrativa, mesmo que o conteúdo literário conquiste o brilho estético, mantendo o equilíbrio entre as partes. Como nesse caso:
“Cúmplices de uma pátria sem caráter que os perseguia, nisso haviam se tornado. Por mais verdadeiros que fossem, seus argumentos pareciam inócuos. Eles haviam se recusado, sim, a vestir a camisa, haviam contido todos os gritos, vaiado com afinco cada autoridade que aparecesse na tela, cada farda reluzente que às câmaras se apresentasse.”
É este equilíbrio que revela um escritor de grande qualidade, a exigir maior atenção da crítica e dos estudiosos. Outro cuidado exemplar de Fuks está no uso do diálogo, técnica que pode provocar grande dano na narrativa, mas tratado com muita atenção aqui, de modo que praticamente não existe, a não ser no caso do discreto discurso indireto livre. Usasse o diálogo tradicional, correria o risco de trazer o panfleto direto para o texto. Todos sabem que o diálogo tradicional é eloquente e vibrante, na maioria das vezes tornando a narrativa muito discursiva.
A história do romance brasileiro registra o uso e abuso do diálogo tradicional, sobretudo no romance regionalista, que pretende registrar e documentar a fala no sentido sociológico-antropológico. Nos textos mais recentes é comum o uso do discurso indireto livre, criado por Flaubert, sobretudo no romance Madame Bovary. Quem fortaleceu o uso do discurso indireto livre no Brasil foi Clarice Lispector através do solilóquios e de monólogos interiores. Julian não apresenta influências de Clarice, até porque tem um timbre forte e uma linguagem muito pessoal.
É preciso destacar que são inúmeras – como procuro demonstrar – as qualidades deste romance. Aliás, o romance brasileiro tem sido muito enriquecido por muitos autores que têm na prosa a realização plena da obra artística, mesmo quando tende a enveredar pela denúncia social e por questões políticas, que devem ser sempre questionadas.
A resistência é, sem dúvida, um romance que consolida a arte da narrativa no Brasil. Pela habilidade com que dissolve a questão política em alta qualidade literária.
O caminho do artista para o belo
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- Categoria: Raimundo Carrero
- Escrito por Raimundo Carrero