Flaubert, Kafka, Proust e Joyce foram sempre autores imensamente criativos, imaginosos e renovadores. Por isso sempre mereceram a melhor atenção por parte dos estudiosos e dos críticos. Acreditaram no poder da imaginação, mas a imaginação que provoca a inteligência do leitor e que reclama cumplicidade. Tornaram-se eternos.
A capacidade imaginativa e criadora destes escritores pode ser agora conferida pelos brasileiros em livro admirável que reúne as análises literárias do russo Vladimir Nabokov (foto), autor do inesquecível Lolita, chamado simplesmente de Lições de Literatura, editora Três Estrelas, São Paulo, em trabalho meticuloso.
A grande força analítica do livro está no fato de que os livros são analisados pelos seus elementos narrativos — personagens, cenas, cenários, diálogos — e não pelo material de outras ciências, muito menos pelas escolas e movimentos. Nabokov reforça a ideia de que as qualidades de uma obra de arte literária estão dentro dela, dentro dos arranjos do autor com a colaboração do escritor que, afinal, é quem escreve a obra. Uma narrativa responde pela arquitetura da obra — muitos críticos chamam de carpintaria ficcional — e pelo grau de ilusionismo do texto, capazes de provocarem estranhamento e inquietação mesmo no leitor mais requintado, intelectual e preparado.
O método de Nabokov, em princípio, provocou muitos debates e polêmicas nos Estados Unidos — onde se refugiou quando fugiu da Rússia. A academia norte-americana estava acostumada a analisar as obras literárias pelo método científico que questionava as obras segundo a tendência política ou existencial do autor, além de sua participação em escolas e movimentos, muitas vezes reduzindo o estilo ao uso das palavras, das frases, das orações, das conquistas do texto. Esqueciam os cortes psicológicos e narrativos, a distribuição de cenas, o movimento dos diálogos, as marcas das sequências narrativas.
Isso não se constituiu erro. Era apenas um método acadêmico. Um método de examinar a obra literária de ficção. Mas Nabokov colocou ordem na casa — o que vem mudando nos anos mais recentes. Em muitos casos, as academias norte-americana e europeia voltam-se para o arsenal crítico de outras ciências para explicar o fenômeno literário. Aos poucos tudo isso foi se transformando no Método Ideológico — por causa da “guerra fria”. Mas como uma coisa não elimina a outra, o conjunto, sem dúvida, favorecerá a reflexão sobre o produto em análise. De minha parte, prefiro o método estético-literário. Sem diminuir, jamais, outras escolas, mas procurando compreender ambas.
O estudo de Nabokov a respeito da construção de A metamorfose de Kafka é intensamente belo e revolucionário. O autor de Lolita divide a primeira parte da novela em sete cenas, analisando uma a uma. Aí está o método estético-literário. A primeira cena reflete a transformação do homem num besouro, e mostra como ele se move ou não na cena. Acrescenta a técnica do olhar do personagem, que faz a cena se mover continuamente.
Escreve Nabokov: “Gregor acorda. Está só. Já se transformou em um besouro, porém os novos instintos do inseto ainda se misturam com suas impressões humanas. A cena termina com a apresentação do elemento de tempo ainda humano”.
Aliás, esta é uma questão que causa muito polêmica na literatura: a humanização de animais e bichos, besouros e baleias. Para Nabokov, é justamente esta humanização que torna possível a verossimilhança do personagem, tornando a história crível. Do ponto de vista técnico estrutural, observa-se que o texto é um longo monólogo interior, realizado entre a voz em primeira pessoa e a voz em terceira pessoa, o que faz o texto sofisticadíssimo. Na primeira pessoa Gregor pergunta — e responde — quais as causas que o levaram a se transformar num inseto, talvez um besouro. E, ainda mais, questiona a própria existência. Na verdade, a genial metáfora e o discurso do personagem lembram a estrutura do não menos genial e não menos famoso monólogo de Hamlet, em Shakespeare. Não esquecendo que as grandes obras sempre se relacionam.
Gregor — “que tal se continuasse dormindo mais um pouco e se esquecesse de todas essas tolices... Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada. Os seres humanos precisam ter o seu sono”...
Hamlet — Só isso. E com o sono — dizem extinguir as dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita.
No conteúdo, os temas se aproximam e perpassam toda a angústia da obra, submetida, assim a alternâncias técnicas, embora ambas as obras sejam monólogos. Um para teatro, outra para livro, com o silêncio e a cumplicidade do livro. Mas porque monólogo e não solilóquio, se ambas as técnicas parecem ter a mesma finalidade. Não, não é verdade. Monólogo é uma conversa do personagem com ele próprio, de maneira linear, lógica e organizada porque tem origem no teatro. Diz-se, inclusive, que o monólogo precisa de ouvido; enquanto o solilóquio é desorganizado, caótico e confuso porque interessa unicamente e aparentemente ao personagem. Em sequência tem ainda o fluxo da consciência que é esta mesma conversa desorganizada com destaque para o ritmo, os sons, as aliterações, as elipses, enfim, o barulho interior.
O fluxo atingiu o seu melhor momento com Joyce, tornando-se inimitável. Concluímos, portanto, que A metamorfose é uma novela escrita com grande sofisticação, que chega ao leitor com simplicidade.
Lições de imaginação e criatividade
- Detalhes
- Categoria: Raimundo Carrero
- Escrito por Raimundo Carrero