Este romance — O ouro de Quipapá — do francês Hubert Tezenas, publicado pela Editora Vestígio, com tradução de Fernando Scheibe — apresenta pelo menos três grandes qualidades narrativas, não muito comuns na ficção tradicional — rapidez, investigação exemplar dos personagens e construção correta dos diálogos —, de forma que o leitor mergulha com todos os sentidos no drama da condição humana, mesmo que o autor nunca se demore na imersão da psicologia dos personagens. Assim, pode-se ler este livro com muito agrado sem cair na armadilha de monólogos ou solilóquios demorados que, muitas vezes, tornam a leitura enfadonha, embora aparentemente sofisticada.
Em certo sentido, pode-se classificá-lo como um romance de personagens, mesmo que a história seja muito forte e atrativa. Desde o início, Alberico Cruz mostra sua decisiva presença narrativa. Mas ele não é apresentado por dúvidas ou questionamentos. Basta observar o que ele tem de mais característico — o olhar atento e apaixonado, que desenvolve, muitas vezes, as cenas paralelas, e que, por isso mesmo, nunca coloca o leitor na ação central.
A rapidez é uma das propostas de Ítalo Calvino para o próximo milênio, segundo texto revolucionário que publicou na década de 1990, reunindo textos de conferências que publicou nos Estados Unidos. Mas o que é, enfim, esta rapidez? Contar, contar, contar e deixar o leitor a ver navios? É preciso ter calma, é preciso ter cautela. Em O ouro de Quipapá, Hubert deixa bem claro esta questão.
O texto sem dúvida é rápido, mas aí o autor usa uma técnica bem contemporânea que seduz o leitor, ou seja, o olhar do personagem. Isto significa que o narrador privilegia as cenas — mais exatamente, as cenas sobre cenas, numa sequência vertiginosa que vem muito do chamado romance noir, sem a imersão vertical na psicologia dos personagens, evitando que a narrativa se perca em reflexões. Para alcançar este efeito, Hubert centralizou as ações muito em Alberico Cruz, que se transforma, nesta história de crime na zona da mata de Pernambuco, num protagonista curioso. É uma história de crime, de buscas, de procuras, de obstinação humana.
Aí entra a habilidade técnica do autor, permitindo que o olhar do personagem exercite sua capacidade critica, sobretudo a crítica social a relatar — mesmo de soslaio — as condições sociais do homem nordestino e pernambucano, pressionado pelas inacreditáveis injustiças, povoando áreas inóspitas e situações lamentáveis de existência.
Por isso mesmo, chamaria a atenção aqui para mais um dos destaques deste romance escrito por um francês e talvez devido a isso preocupado com as condições às vezes subumanas da existência tão árida e tão difícil nesta região do país. Hubert viveu durante anos nesta área, quando teve ocasião de experimentar a amargura e a força, o destino de cidadãos e de camponeses regionais.
Mesmo assim, do ponto de vista técnico, pode-se destacar que o narrador evita, de forma bem clara, os monólogos que comumente impregnam a crítica política ou social, sobretudo de estrangeiros. Verdadeiras ladainhas sofríveis, com ares de sociologia e de ciência política amadora. O olhar crítico que observa uma mulher é o mesmo olhar crítico que examina um conflito social. Sem paixões políticas inúteis. E sem teorias políticas levianas próximas do manual escolar.
É também devido a esta técnica que o narrador constrói Alberico Cruz, este personagem inquietante, desde o momento em que ele sai de casa para trabalhar, até se envolver nos acontecimentos que resultarão na história do O ouro de Quipapá. A princípio apenas um cidadão comum, um funcionário que deseja tao somente cumprir suas obrigações naturais, embora também desde o início esteja movido por suas curiosidades e aptidões.
A cena em que ele constrói com o olhar, a seu modo, e tudo termina sendo feito a seu modo, outra personagem, ainda no começo do romance, é muito bem elaborada, verdadeiramente. Contida e elaborada, sem palavras inúteis e sem destaques desnecessários.
Em seguida, e não somente em terceiro lugar, mas com igual importância, vem a construção dos diálogos. Rápidos, incisivos, curtos. Às vezes sem travessão, às vezes com travessão, mas dotados de uma técnica capaz de seduzir o leitor.
Aliás, em meu livro Os segredos da ficçãochamo a atenção para o fato de existirem cinco técnicas de diálogos, entre elas os diálogos com travessão e sem travessão, tão ao gosto do notável ficcionista Rubem Fonseca, um dos escritores mais importantes do Brasil, sem dúvida. Por tudo isso, O ouro de Quipapáé, com certeza, um grande livro.