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A realização destelivro inquietante — Flores artificiais— deve ter surpreendido o próprio Luiz Ruffato. É que a ideia, ou seja, a concepção apresenta-se curiosa e envolvente. Mas a realização é ainda melhor. Aquilo que poderia sugerir apenas o registro de opiniões e observações sobre a paisagem e a topografia de muitas regiões do planeta, transforma-se numa longa e inquietante análise do comportamento humano, nos aspectos mais abrangentes — psicológico, geográfico, arquitetônico.

 

Na concepção, um personagem escreve cartas a si mesmo – pelo menos é assim que parece – com registros de sua aventura no mundo, deslocando-se para várias regiões do planeta, mas essas cartas terminam nas mãos do escritor Luiz Rufatto, na verdade, o escritor da família, dos amigos e dos aderentes. Uma ideia ou concepção, no mínimo, curiosa. O escritor Luiz Ruffato recebe estas cartas e resolve reuni-las num livro, que pode ser ficção ou um ensaio sobre a condição humana. É claro que, intimamente, o missivista é o próprio Ruffato tornado narrador, um narrador indireto, que não conta exatamente uma história, como costumamos ler ou escrever. Um narrador sem intriga, sem enredo, sem geografia plana – uma cidade, um bairro, uma comunidade agrícola, uma igreja, um convento, um subúrbio — um narrador, enfim, cujo objeto é o ser. Por isso mesmo foge a toda concepção do romance, da novela, ou das narrativas tradicionais. Ali estão os personagens em confrontos, as histórias entrecruzadas, os diálogos realizados ou sugeridos, a dor e a ironia, a alma em conflito, enfim, o homem diante de sua agonia no dorso do mundo.

 

O missivista, de nome Dório, escreve, por exemplo, à página 24, “este é um arremedo de biografia construída como pontes pênseis sobre o abismo. Tudo que sei sobre Bobby, lembranças de lembranças, foi-me relatado de maneira caótica, com longos lapsos e imensas contradições. E costuro estes fragmentos, ouvidos há mais de trinta anos, com uma linha que já não distingue memória de imaginação”.

 

Não haveria aqui uma revelação? Uma planta baixa do livro? Uma mostra da estratégia narrativa? De repente, pela voz do narrador, Luiz Ruffato resolve dizer que, de repente, sucumbiu, de forma inteligente e precisa aos encantos estratégicos das cartas que não são apenas cartas, são imersões no ser, já disse, fugindo de uma técnica narrativa tradicional e encontrando uma forma surpreendente e bela. No entanto, não é incomum que autores resolvam revelar técnicas e intenções em momentos nos quais o leitor ou o analista parecem relaxados ou inadvertidos.

 

O que interessa dizer, afinal, é que Luiz Ruffato escreve um livro notável, porventura um romance? — notável, e não apenas um livro comum. O autor conversa consigo mesmo e com o personagem que, afinal, é o leitor, e os três vivem a grande aventura de interpretar e de construir a vida, com aquilo que a vida tem de mais precioso: a alma.

 

Por tudo isso, está escrito na página 50 “...Os corpos estavam ali, compreende?... mas a alma, a alma havia migrado para um espaço sem tempo...”

 

Por fim, é preciso destacar que Flores artificiais é um livro — e não somente um romance, embora o romance reúna todos os principais elementos para a reflexão, sobretudo artística, do confronto do homem com o mundo — que está bem acima da média nacional, revolucionário na forma e no conteúdo, embora a rigor o texto literário não tenha compromisso com o conteúdo e, sim, com a estética — , sobretudo porque consegue equilibrar a proposta de concepção com a plena realização literária. E confirma, sinceramente, o nome de Ruffato como um dos grandes da literatura contemporânea.