Foto por Bruno Vinelli/Divulgação

A estreiade um artista — em qualquer nível e em qualquer área é sempre uma aposta, uma busca. Quando escreveu sobre Proust, E. M. Forster destacou que, embora o considerasse notável, não podia fazer dele um definitivo juízo de valor, porque o francês ainda não havia concluído a obra, mesmo que tivesse publicado os primeiros volumes de Em busca do tempo perdido. Forster teve, pelo menos, a honestidade e a sinceridade de revelar as suas verdadeiras limitações que são, em síntese, as limitações de todo crítico.

 

Tudo isto para dizer que a posição do crítico é sempre temerária e exige o máximo de cuidado para não cometer asneiras. Nem o elogio fácil, sem explicações sinceras, nem a crítica inconsequente, muitas vezes cheia de lugares-comuns. No Brasil, Machado de Assis teve que enfrentar este tipo de crítico a partir de Silvio Romero, que se deixava conduzir pela análise impressionista da época, sem conhecer nem investigar as técnicas que o autor de Dom Casmurrousava com grande competência, e que, ainda hoje, não foram suficientemente analisadas. Em todo campo artístico — e literatura é sobretudo arte —, o criador não conhece limites nem regras, nem pode ser reduzido a um esquema. Essa é a verdade absoluta.

 

No momento em que termino a leitura do romance de estreia de Débora Ferraz, Enquanto Deus não está olhando, editora Record, 2014, sou tomado de entusiasmo diante desta revelação. Mas contenho os meus adjetivos e procuro investigar, com o máximo de rigor, quais as qualidades desta autora ainda tão jovem. Em princípio, devo destacar que não se trata apenas de um romance de texto, tão em voga no Brasil, o que leva a crítica, em geral, a grandes equívocos: trata-se de um romance de atmosfera, de densa e angustiante atmosfera, representada pela dolorosa busca de Érica, a também jovem personagem que atravessa o romance procurando o pai, que se faz presente apenas nas lembranças, de forma que se revela pelo passado e só através dele. E aí, creio, está a grande qualidade da autora, cuja protagonista está sempre caminhando, caminhando, caminhando.

 

A primeira frase do livro é forte, muito forte, decisiva: “O fim do mundo chegou cedo desta vez.” Sem dúvida, forte e surpreendente. Outra das louváveis qualidades de Débora — surpreender e fustigar o leitor com cenas ou frases inesperadas. Para um destes críticos chamados de rigorosos, a frase seguinte poderia conter um elemento inadequado, mas não é bem assim. Vejamos: “Subo a ladeira. A rua de paralelepípedos está deserta apesar de não passar das oito da noite, e à minha volta só as casas pequenas e imóveis, é que, vez por outra, dão qualquer sinal de vida.” Compreendo perfeitamente que, ao crítico rigoroso, poderia parecer imprecisa e óbvia a palavra “imóvel”. Mas aí a palavra não tem apenas efeito informativo. Ela carrega toda a pressão, toda a força angustiante da personagem martirizada. Não é uma palavra, é um sentimento. Mostra a imobilidade interior da personagem e seu impressionante sufocamento. Toda casa é imóvel, sem dúvida, mas sem que isso seja dito do ponto de vista da personagem, tudo o mais desaba.

 

Portanto, essa é a diferença inequívoca do que vem a ser texto de personagem e texto de escritor. O escritor nem sempre considera o mundo do personagem, sente-se dono do texto e usa a mão de ferro, que interfere, altera e, embora seja objetivo, joga o personagem para longe. Pode até acertar na palavra — que costuma chamar de exata — mas que exatidão é esta? — e perde o sentimento que dever ser, exatamente, o sentimento do texto. Tudo isso sempre me parece fundamental observar, porque o autor não é dono exclusivo da narrativa, precisa reconhecer o universo interior dos personagens e suas manifestações.