A principio o título do novo romance de Maria Valéria Rezende — 40 dias, publicado pela editora Alfaguara — pareceu-me pobre, insignificante, destituído de beleza. Antes de ler o livro, porém, perguntei-me por que não 40 anos ou 40 meses. Na verdade, ironizei. À maneira que fui lendo pouco a pouco, investindo no mundo de Alice e nas anotações singulares — voltei a pensar. Por que não era: Conversa com Barbie? Parei de brincar quando comecei, levemente, a entender o mundo da personagem principal Alice, a me aventurar numa interpretação do mundo da personagem e da sua imersão num mundo cruel, sujo, doloroso, mas nem sempre austero. Aliás, a linguagem, o desenvolvimento das cenas, a montagem da história foram me levando para uma nova reflexão: o que é escrever bem?
Sim, porque se imagina que escrever bem é escrever leve, com graça, obedecendo as regras gramaticais, sem torturas para o leitor, claro e objetivo, mas não é bem assim. Escrever bem é algo muito mais profundo, muito mais inquietante, muito mais doloroso. Ainda na adolescência, aprendi que escrever bem não é escrever certo. Muitas vezes escrever bem é escrever errado. Que errado seria este, então? E me perguntava: o que é escrever bem? É preciso carregar cada palavra de um imenso significado do mundo. Carregar cada palavra de sangue, nervos, vida. Não basta escolher boas e belas palavras. Não basta ser objetivo. Muitas vezes é preciso errar para acertar. Não ter medo, não ter receio, não fraquejar. Uma palavra, uma metáfora e um símbolo carregam mais significados do que um longo discurso linguístico, longas exposições de muitas páginas. Basta um gesto de um personagem, um olhar, a interrupção de um diálogo e tudo será mais profundo e mais inquietante.
Assim, por exemplo, é Maria Valéria Rezende com seus aparentemente singelos 40 dias e sua Alice, um nome tão despojado e, assim de repente, tão humilde. Para alcançar este nível de humildade — e até de santidade —, o texto lembra Um coração simples, de Flaubert, sem que seja necessariamente influência. A influência imediata é a Bíblia, com seu despojamento, com sua transparência, com sua singeleza. Não é qualquer um, por exemplo, que escreve No Princípio era o Verbo, com esta carga de significado, de mistério e, no entanto, de revelação. São palavras, são; mas são apenas palavras? Não. Há toda uma inquietação interior, um universo de trevas e de luz. E aí está o segredo do grande artista. A frase é objetiva, é; mas é também subjetiva, e é justamente esta oscilação que a torna perfeita, inescrutável.
Vencendo as minhas brincadeiras e as minhas ironias, Maria Valéria foi demonstrando humildade de suas palavras e, mais ainda, a santidade suas palavras e da sua história. Ao dar ao romance o título de 40 dias, a escritora — que é freira -está se referindo com uma clareza absoluta ao período quaresmal que antecede a Páscoa — mostra que Alice vive um momento religioso em que a personagem se despe de suas tentações, dos pecados e das vaidades para alcançar a luz, sem fazer dela um ser teológico, uma freira ou uma quase santa. Santa, na verdade, pelo seu despojamento, pela sua entrega, pelo esforço da revelação.
Basta ler um pouco do Evangelho de São João para entender a Quaresma. Aquele momento em que Jesus vence todas as tentações, sofre fome e sede ate se tornar, definitvamente, o humanamente Deus, o nosso Deus. Não é por outra razão que está escrito no livro de Valéria — “Guiava-me a chuva, o frio, a fome, que se resolvia com qualquer coisa, com 10 reais o dia”. Em suma, um romance consagrador.