Bell Rock Lighthouse (1819), de william turner

 

Enquanto escrevia Ao farol, rumo ao farol, um pouco antes, talvez, Virginia Woolf lia, com entusiasmo e carinho, os primeiros volumes de Em busca do tempo perdido, de Proust, dizem os biógrafos da escritora inglesa. Daí não ser difícil encontrar neste romance, especialmente, alguma influência do francês, sobretudo em suas frases longas, por assim dizer, distendidas, em que o tempo e a obra se encontram para forjar um mundo psicológico, eivado de referências psicológicas, que vão do tristonho e solitário ao eufórico e entusiástico. Diga-se de passagem, uma influência e nunca uma imitação ou cópia. Até porque Virginia não tinha um método racional em As ondas— como procuramos demonstrar aqui em artigo anterior — mas escrevia de corpo inteiro, não somente com a mente ou com os dedos, mas com os nervos. Jogando-se inteira na obra, nas palavras, nas frases, nos personagens, com a incrível habilidade de quem conhece e ama o destino humano, revolvendo os escombros para iluminá-los delicadamente, sem rasgos dramáticos, mas com habilidade, suavidade e ternura.Mesmo quando recorria a estratégias formais, em geral submetidas à condição psicológica.

 

Ainda assim, Virginia busca conscientemente uma estratégia ficcional em Ao farol, até por causa da influência e faz isso com enorme competência. Não só pelas estratégias, mas sobretudo porque elas, as estratégias, estão submetidas à criação nervosa da escritora. Em escritores menos interessantes, a estratégia formal está acima das características criadoras do autor; em autores como Virgínia, no entanto, a estratégia existe de acordo com a exigência nervosa.

 

No posfácio a esta nova edição de Ao farol — Editora Autêntica, tradução de Tomaz Tadeu, Belo Horizonte, 2013 — Hermione Lee defende, por exemplo, a necessidade de técnicas para a construção do trabalho ficcional. Afirma “Como a ficção não é música ou pintura ou cinema ou um conjunto de pensamentos desarticulados, ela exige estratégias formais para poder ser várias coisas ao mesmo tempo.”

 

Aliás, no posfácio Hermione mostra com clareza as estratégias de Virginia para Ao farol, que consolida o que acabamos de dizer.”A pintura de Lily — um dos elementos da narrativa — foi a maneira que Woolf encontrou de inserir no romance um comentário sobre seu próprio processo de criação. As imagens de Lily para a sua arte — “via a cor ardendo numa moldura de metal; a luz da asa de uma borboleta repousando sobre os arcos de uma catedral” — remontam à visão que Virginia teve da catedral de Santa Sofia, em sua visita a Constantinopla, registrada em seu diário de 1906. “Fina como um vidro, moldada em generosas curvas” e “tão sobrenatural quanto uma pirâmide. Aquela forma em cúpula, que combina o sólido com o etéreo era a essência do seu plano para o livro.”

 

Percebemos, assim, de forma muito clara que, em Virgínia, a estratégia formal está submetida ao caráter psicológico e não ao contrário como ocorre na maioria dos autores. Daí porque ela escreve em ondas, como destacamos na coluna anterior. Ocorre que, em autores convencionais, as técnicas estão sempre em busca da moda e, por isso, fracassam. Em Virginia Woolf, a técnica é nascida da necessidade narrativa e não ao contrário.

 

O artigo da professora e crítica inglesa é importante para mostrar que não se escreve apenas com a vontade ou o desejo de escrever, mas com o domínio das técnicas e dos movimentos interiores de uma obra de arte. Mesmo quando o livro é escrito por alguém que se chama Virginia Woolf, sem dúvida um dos gênios da literatura universal.

 

Nunca é demais destacar que toda obra de arte é trabalhada em dois campos — o campo espiritual, que reúne a inspiração, a intuição, o sublime – e o campo material, que estabelece a técnica, a maneira de contar, os diálogos, as cenas, os cenários, enfim, o material estratégico, e que é escolhido conforme o espírito do criador.

 

Tal era a preocupação de Virginia, que ela escreveu um ensaio chamado Como se deve ler um romance?, onde ela compara os trinta e tantos capítulos de um romance a uma tentativa de construir algo tão formal e controlado quanto um edifício; “mas palavras são mais implacáveis do que tijolos.” Tamanha consciência artística mostra o quanto Viginia considerava decisivo o trabalho de construir uma obra de arte, ainda que os nervos estivessem no comando.” O fundamental é destacar sempre que, por tudo isso, Ao farol transformou-se, de imediato, na principal obra da extraordinária escritora inglesa.