Não é incomum encontrar críticos e resenhistas que se mostram desnorteados diante da obra do argentino César Aira. Na verdade, o autor é intrigante, dono de uma novelística muito pessoal, particularíssima e que não atende a nenhuma dessas técnicas de vanguarda ou apenas ousadas que se estabeleceram na literatura universal, tratando da fragmentação do homem universal. Aira observa e examina a alma pelo viés da sutileza da narrativa, usando narradores surpreendentes ou intrigas — se é que se pode chamar de intriga, no sentido tradicional — e episódios inteiramente surpreendentes.
Uma leitura, ainda que rápida, deste apaixonante Como me tornei freira, nos leva ao prazer de uma leitura que se constrói e se reconstrói a cada parágrafo. Até mesmo a narradora, uma menina de seis anos, às vezes é menino, e tem um ponto de vista que nos leva a verdadeiros delírios, mesmo por causa da idade — um tanto madura na narração, um tanto infantil, muitas vezes oscilante. Talvez por ter optado justamente por este tipo de personagem — também incomum e também surpreendente — Aira coloca o leitor em permanente expectativa e, por isso mesmo, sua linguagem pede um pouco — ou muito — de atenção especial porque vai da extrema seriedade ao ingênuo. Daí porque Sérgio Santana escreve, corretamente, no prefácio “Tudo pode parecer surrealista, mas não encerremos Aira em um rótulo, digamos, sim, que ele joga um jogo de possibilidades infinitas. César Aira não é apenas surrealista, porque é único, não se parece mesmo com ninguém, embora André Breton e Raymond Russel sejam citados em A costureira e o vento, assim como jogo dos cadáveres esquisitos, jogado pela confraria surrealista. Acrescento que A costureira e o vento é uma novela curta que compõe o volume de Como me tornei freira. Sou tentado a dizer que as duas novelas são uma ótima introdução à novelística de Aira, mas como não conheço a obra do escritor argentino — que já chega a mais de 70 volumes —, prefiro dizer que são leituras imprescindíveis e que pedem urgência do leitor mais sofisticado. No Brasil, a primeira editora a publicá-lo foi a Iluminuras, de São Paulo, embora os livros, por algum motivo estranho, tenham passado despercebidos. Até por causa da originalidade.”
Imaginem então um texto completamente novo, conduzido por uma narradora de seis anos e inominada. Não é um fácil trabalho de escrita, nem muito menos uma leitura desleixada. Memo assim não se pense que Aira é um desses autores esotéricos nem que tenha textos contraditórios. Tudo é muito simples, límpido, direto. Basta uma mostra, embora a narrativa avance com rapidez. Este é o começo da novela: “A minha história, a história de ‘Como me tornei freira’, começou muito cedo na minha vida. Eu tinha acabado de fazer seis anos. O começo foi marcado apenas por uma lembrança vívida, que posso reconstituir nos mínimos detalhes. Antes disso não há nada, tudo foi formando uma só lembrança vívida, continua e ininterrupta, incluindo os períodos de sono, até que tomei o hábito.” O texto é assim — muito claro. Não é fácil, todavia, explicar o que é esta lembrança vívida, ou este bloco de lembranças, que vai evoluindo de palavra a palavra, de parágrafo a parágrafo, de ação a ação, envolvendo, inclusive, este universo surrealista, sem a natural ordem lógica. Nada, porém, que não possa ser entendido e explicado. Mas tudo dependendo, é claro,do brilhantismo de Aira.
Os episódios são cada mais estranhos e inquietantes até este episódio que tem um efeito especial no romance: “o pior é que... eram eles... Eram papai e mamãe os que estavam chamando na porta! Os dois mortos tinham assumido a forma de papai e mamãe... Não sei como os enxergava, suponho que pelo buraco da fechadura, que eu alcançava ficando na ponta dos pés... Eu me arrepiava dos pés à cabeça, eu me congelava... o vê-los tão idênticos... tinham roubado seu rosto, a roupa, o cabelo... de papai muito pouco, porque era careca, mas os cabelos ruivos de mamãe... Eram símiles perfeitos, sem erro... O trabalho que tiveram! Esses seres não tinham forma, ou não a revelavam para mim... esses simulacros, suas péssimas intenções... o espanto me gelava o sangue, não podia pensar...
Sacudiram a porta com fúria, não sei como não vinha abaixo... Gritavam meu nome, fazia horas que estavam gritando... com as vozes de papai e mamãe... As vozes também! Um pouco alteradas, um pouco roucas... Tinham tomado conhaque no velório, não estavam acostumados... ficavam loucos... Tinham perdido a chave, ou a tinham esquecido... uma coisa assim... a mentira era tão transparente... Eles me insultavam! Me diziam coisas feias! E eu chorava de horror, muda, paralisada...”
Enfim, uma narrativa poderosa, sombria e alegre, tudo ao mesmo tempo que nos revela o mundo dos pesadelos e dos sonhos e que nos encaminha para a revelação da alma, algo incomum na literatura. E, mais ainda , que nos deixa perplexos entre a genialidade e a mediocridade, a nos deixar inquietos com um pegunta permanente: a vida é um pesadelo? Ou precisamos de pesadelos para poder viver? Questões que só a leitura de Aira pode nos revelar. São autores assim que estruturam uma literatura e por que não uma vida verdadeiramente renovadora.