Abaixo você lê um trecho de Raça, poder e prisões desde o 11 de Setembro, texto proferido no Metro State College (Denver, EUA) em março de 2002, que faz parte de O sentido da liberdade e outros diálogos difíceis, novo livro de Angela Davis no Brasil, publicado pela Boitempo Editorial. As notas que acompanham este texto são da edição do livro. O sentido da liberdade estará disponível em livrarias a partir do dia 15 de novembro.
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Quando a figura de Osama bin Laden começou a se definir no imaginário público como o epítome do mal, a reação comum foi um medo coletivo generalizado. Ao chamar atenção para a dimensão ideológica da “guerra ao terror”, não pretendo minimizar a enorme perda de vidas humanas e o profundo sofrimento gerado pelos ataques do 11 de Setembro. No entanto, quero olhar para a estratégia política por trás do pânico moral que se condensa na figura de Bin Laden. Essa estratégia ecoa o programa político da era McCarthy: produzir certo pânico moral a fim de combater o comunismo. Também ecoa as justificativas retóricas para o encarceramento em massa. Durante a era McCarthy, comunistas eram a própria encarnação do mal. A partir de meados da década de 1980, as pessoas que cometiam crimes passaram a ser retratadas como a face do mal. Agora estamos testemunhando o uso de uma estratégia política semelhante para justificar uma guerra poderosa contra o terrorismo. Filosoficamente, a evocação do “mal” requer uma concepção simultânea e implícita do “bem”. O mal sempre exige seu oposto.
No caso do comunismo, o oposto, a encarnação do bem, tem sido o capitalismo. No caso do crime, com sua racialização subjacente, a encarnação do bem é a pessoa branca e íntegra de classe média. Quando Osama bin Laden se torna a encarnação do mal, quem representa a força gêmea do bem? Antes de 11 de setembro de 2001, seria impossível imaginar George W. Bush como avatar da justiça. No entanto, o atual pânico moral é construído de forma a posicionar Bush como o salvador nacional que enfrenta Osama bin Laden, o inimigo por excelência. Depois do 11 de Setembro, a população parece ter esquecido rapidamente que uma parcela significativa de nós nem sequer estava persuadida de que Bush era o presidente legitimamente eleito dos Estados Unidos. Não podemos esquecer que, antes do 11 de Setembro, militantes do país tinham amigos que eram membros do Partido Comunista, e alguns deles foram forçados à clandestinidade durante a década de 1950. Como resultado, as pessoas da minha família com frequência eram seguidas por agentes do FBI. Aos cinco anos, aprendi a identificá-los e não dar nenhuma informação a eles. O único crime dos amigos de meus pais era acreditar no socialismo. Devido ao pânico moral que decretou que comunistas eram pessoas inimigas do Estado, inúmeras instituições foram expurgadas de comunistas, seus aliados e pessoas que simplesmente acreditavam na democracia.
Joseph McCarthy e seus apoiadores políticos conservadores não foram os únicos responsáveis pelos expurgos anticomunistas na academia, no movimento trabalhista e em Hollywood. Progressistas também foram responsáveis. Estas eram as pessoas que estavam com medo, que pensavam que poderiam ser associadas ao comunismo se não se expressassem contra ele de forma vigorosa. Vocês entendem? Muitas pessoas que se identificavam com a esquerda concordaram — algumas simplesmente ficando em silêncio — com a campanha para erradicar as ideias progressistas de dentro das principais instituições de nosso país.
Nós que temos atuado no movimento antiprisional na última década notamos clara semelhança entre a representação do terrorista e a representação do criminoso. O público já estava preparado para a mobilização de emoções nacionalistas com base no medo de um inimigo racializado. Isso já havia ocorrido em relação à chamada guerra ao crime e, aliás, permitiu o surgimento de um vasto complexo industrial-prisional que não só impulsionou pressupostos ideológicos já difundidos de que segurança e proteção eram função do encarceramento de um grande número de pessoas de minorias étnicas e raciais, como, ao longo desse processo, criminalizou imigrantes sem documentos. [...]
Nada nunca é tão simples quanto parece. Cabe a nós refletir, indagar, analisar criticamente e reconhecer que, se não investigarmos aquilo que damos por certo, se não nos dispusermos a questionar o que fundamenta nossas ideias, opiniões e atitudes, nunca avançaremos. A xenofobia que ancora a atual guerra contra o terrorismo está bastante relacionada à história secular de racismo no discurso popular dos Estados Unidos. No início da década de 1990, alegou-se que o racismo estava se tornando rapidamente obsoleto no país e que não precisávamos mais de programas de ação afirmativa porque as populações de origem africana e latina, e também as mulheres de todas as origens raciais, estavam no caminho da igualdade, as condições igualitárias haviam sido alcançadas. Ward Connelly, o homem negro membro do conselho de regentes da Universidade da Califórnia, emergiu como a figura de proa dessa campanha contra a ação afirmativa, que infelizmente foi bem-sucedida na Califórnia — tanto nas universidades quanto no contexto mais amplo do estado.
Na Califórnia, um homem negro tem cinco vezes mais chances de ser encontrado em uma cela de prisão que em uma turma de faculdade. Poderíamos perguntar: que tipo de ação afirmativa é essa? Parece uma inversão dos objetivos originais da ação afirmativa. Ação afirmativa reversa. Mas, para não dar a entender que parafraseamos a noção de “racismo reverso”, podemos reformular esse dilema de forma diferente: na Califórnia, as evidências mais consistentes do resultado dos programas de ação afirmativa podem ser encontradas na prisão. Uma estratégia implícita de ação afirmativa resultou na racialização da população carcerária como latina e negra. A maioria das pessoas nas prisões da Califórnia é latina. Se considerarmos os presídios, além das prisões estaduais e federais em todo o país, descobriremos que pessoas de minorias étnicas e raciais representam dois terços da população carcerária. As mulheres constituem o grupo que mais cresce na população carcerária, e, entre as mulheres presas, as de minorias étnicas e raciais constituem a parcela que mais cresce. A raça evidentemente é um fator determinante quando se trata de quem vai para a prisão e quem não vai. [...]
Falei sobre o desmantelamento dos programas de ação afirmativa na Califórnia ao mesmo tempo que estratégias sorrateiras de ação afirmativa garantem que as prisões do estado estejam lotadas de pessoas negras e latinas. Curiosamente, um programa de ação afirmativa tácita parece estar funcionando nas práticas de contratação para cargos de níveis mais altos na hierarquia prisional. Há um esforço consciente para colocar mulheres pertencentes a minorias étnicas e raciais em posições de autoridade. Uma mulher de origem latina, por exemplo, é diretora de um dos principais presídios masculinos de segurança máxima do estado. [...]
Mulheres no topo das hierarquias das prisões femininas que se identificam como feministas às vezes acabam criando condições muito mais difíceis para as detentas. A diretora feminista de um presídio (autora de The warden wore pink [O diretor vestiu rosa]) [nota 1] insiste que as mulheres não devem ser tratadas de forma diferente de como os homens o são; detentas devem ser iguais a detentos. Seu argumento, bastante simplista, é o de que, quando os homens tentam escapar, não há tiro de advertência antes que atiradores de elite mirem neles. Portanto, para que a igualdade prevaleça, nenhum tiro de advertência deve ser disparado contra as mulheres. Nessa prisão feminina de Michigan – não estou brincando –, houve um debate sério sobre o fato de as mulheres merecerem ser alvejadas sem aviso, o que as tornaria iguais aos prisioneiros do sexo masculino. As discussões sobre o número de armas nas prisões femininas em comparação com o que há nas masculinas revelaram a superficialidade das ideias sobre igualdade de gênero que se baseiam em simplesmente alcançar a paridade com os homens. [...]
RACISMO E IMIGRAÇÃO
Em 1958, Paul Robeson escreveu em seu eloquente livro Here I stand [nota 2]:
Aqueles que dizem ao mundo que o racismo vivenciado nos Estados Unidos é apenas um pálido remanescente do passado e é limitado, sobretudo, a uma parte de nosso país, não pode explicar a infame Lei de Imigração Walter McCarran, aprovada pelo Congresso desde a guerra. [...] Veja como nossas cotas de imigração são distribuídas. Dos 3 milhões de habitantes da Irlanda, 17 mil pessoas podem vir a cada ano. Mas para a Índia, com seus 400 milhões de habitantes, a cota é de 100 pessoas. Normalmente nós, pessoas negras, não pensamos muito nas leis de imigração, porque estamos aqui há séculos. Mas em nosso meio há muitas pessoas vindas das Índias Ocidentais cujo talento e vitalidade têm sido muito mais importantes para nossas comunidades que seu número. Sob a Lei Walter McCarran, com todos os seus dispositivos para reduzir a imigração não nórdica, o número de pessoas negras que podem vir do Caribe ou de qualquer outro lugar foi drasticamente reduzido.
As questões levantadas por Paul Robeson no auge da era McCarthy sobre a forma como o racismo influencia a política de imigração são ainda mais pertinentes hoje. No entanto, mais de 40 anos depois, nosso conceito de racismo deve refletir nossa consciência de que ele é sempre influenciado e circundado pelo preconceito de classe, pelo patriarcado, pela homofobia etc. Em outras palavras, o racismo nunca é um conjunto de estratégias que existe por si só. Além do mais, ele muda e se transforma ao longo do tempo. Não permanece o mesmo quando as circunstâncias históricas mudam. Pessoas que fazem campanha contra a ação afirmativa assumem que, como certas formas legais de discriminação racial foram derrotadas, o próprio racismo foi superado. No entanto, como o racismo se esconde nas estruturas de nossa sociedade, no sistema educacional, no sistema prisional, no sistema de saúde etc., ele pode causar mais danos que nunca, mesmo sem provocar o tipo de resistência que levou ao fim da segregação racial.
Um dos desafios cruciais que enfrentamos hoje é entender o caráter profundamente complexo do racismo nos anos posteriores ao 11 de Setembro – racismo não só enraizado na escravização de pessoas de origem africana e na colonização de povos indígenas, mas também racismo imposto a imigrantes. Isso significa que não é aceitável que pessoas negras considerem que não há problema em se envolver na filtragem racial desde que ela não seja direcionada a comunidades negras. A filtragem racial é injusta, seja quem for o alvo. Hoje, mais que nunca, os movimentos de solidariedade antirracista devem enfatizar as lutas em defesa dos direitos de imigrantes e a importância das perspectivas globais, transnacionais e internacionais. As pessoas que vivem neste país vêm do mundo todo. Na verdade, apenas os povos indígenas podem afirmar que são os habitantes originários desta terra. [...]
Na atual era do capitalismo global, a resistência ao racismo só pode ser eficaz se estiver ancorada em comunidades globais de luta. Nosso desafio hoje é construir pontes seguras que unam os movimentos antirracistas, as campanhas pela abolição das prisões e os movimentos pelos direitos de imigrantes. Imaginem as condições de vida de uma jovem no México ou na Coreia que trabalhe na linha de montagem global fabricando sapatos esportivos pelos quais ela recebe cerca de dois dólares a cada par, mas que são vendidos aqui por mais de 100 dólares. A corporação transnacional de calçados esportivos comercializa uma grande quantidade desses tênis nas comunidades pobres de minorias étnicas e raciais dos Estados Unidos. Imaginem que a família dessa garota se mude para os Estados Unidos porque seu próprio país foi tão abalado pelas corporações capitalistas que a família já não consegue sobreviver. Por se mudar para cá sem documentos e por não conseguir escapar das autoridades, a família é acusada de imigração ilegal e trancada em uma prisão onde está detida uma pessoa negra ou latina jovem, talvez até por ter roubado os calçados feitos pela garota imigrante. Esse cenário pode ser fictício, mas coloca em evidência conexões reais. E, por serem conexões muito reais, nossa resistência deve expressar que estamos conscientes da interrelação entre essas questões. Peço a vocês que pensem profundamente sobre suas potenciais contribuições, individuais e coletivas, a comunidades radicais e globais de resistência.
NOTAS
[nota 1].Tekla Dennison Miller, The warden wore pink (Southeastern, PA, Biddle, 1996).
[nota 2]. Paul Robeson, Here I stand (4. ed., Boston, Beacon, 1998 [1958]), p. 83.