Amador Perez, obra da série Um Dois que integra a mostra Sentado à beira do tempo
Nesta quarta (5) será aberta, no Centro Cultural Correios no Rio de Janeiro, a exposição Sentado à beira do tempo: A poética de Murilo Mendes. Nela, 57 artistas dialogam com a obra do poeta mineiro. São obras em diversas linguagens (pintura, desenho, gravura, fotografia, vídeos etc) e, para cada uma delas, os artistas escolheram um poema/aforismo/verso para contextualizar, através da sua poética pessoal, o pensamento muriliano no seu trabalho visual.
Leia, adiante, o texto crítico do catálogo, assinado pelo escritor e ensaísta Silviano Santiago, que resgata os diálogos entre Murilo Mendes (1901-1975) e o pintor Ismael Nery (1900-1934), e também aproxima o atual contexto de pandemia a algo da sensibilidade provocada pelos poemas de Murilo.
A curadoria da exposição é de Marilou Winograd, Gilda Santiago e Aline Toledo. Segue até 20 de junho (das 16h às 19h) e a visitação segue protocolos sanitários.
***
O filósofo e sinólogo François Jullien justifica seu interesse pela questão da alteridade acentuando sua formação híbrida. Afirma: “jovem helenista, na Escola Normal Superior, comecei a aprender o chinês para ler melhor o grego...”. Lê-se melhor Murilo Mendes se se abandonar passageiramente tanto os prefácios de revistas como os manifestos de vanguarda dos anos 1920, e começar a ler o Novo Testamento ou I fioretti di San Francesco. Desde o poema de abertura de seu quarto e definitivo livro, Tempo e eternidade (1934), Murilo anuncia que seus versos passam a ser escritos por “um novo olhar”. Olhar que vem a ser outro pela presença fulgurante em sua vida do artista plástico Ismael Nery, a quem o livro é dedicado. Uma pequena parcela do mundo, o transitório, é suplementada pela totalidade do mundo, o essencial.
O pintor reformata em imagens o imaginário amoroso do poeta.
Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas de passagem
E não se detém mais nas ancas, nas nucas e nas coxas,
Mais se dilata à vista da musa bela e serena.
A que me conduzirá ao amor essencial.
A relação do espectador e leitor brasileiro ao espaço singular e único da vanguarda histórica — espaço pré-determinado por um movimento externo, de que são exemplos os manifestos do Futurismo italiano, duplicados por um movimento nacional, interno, de que se tornará exemplo o Manifesto antropófago, — terá de ser desconstruída pela experiência de outro(s) lugar(es) de criação. Eles brotam e crescem nas fendas férteis do “paideuma vanguardista”, para retomar a expressão dos poetas e artistas concretos nos anos 1950.
Murilo e Ismael convidam o artista brasileiro a frequentar espaços exteriores à certeza vanguardista de nosso Modernismo. Certa Itália intervala a imaginação criadora do artista modernista.
O leitor dos poemas de Murilo — não importa a época nem o lugar — é convidado a visitar não a Itália futurista de Marinetti, mas a medieval e fraterna de Francisco de Assis. O próprio poeta dirá que a mentalidade moderna, em seus textos, se associa ao catolicismo primitivo. Em livro emprestado a ele por Ismael e corresponsável pela conversão, pode-se ler: “Mas será que durante nossa vida não haverá um espaço livre para a Itália, para essa autêntica, real, simples e profunda Itália que, noutro dia, no mosteiro de Fonte-Colombo, chamei de Itália franciscana!”
Ismael e Murilo ganham inesperada dimensão por terem provido o movimento modernista (vale dizer: nossa atualidade artística) com a experiência da alteridade cultural. Experiência da diferença. Da distância (écart), como quer o filósofo/sinólogo François Jullien. Justifica-se ele: “Por que aprender o chinês? Por que a China? Não tinha, na família e por formação, realmente nada a ver com a China. Mas por isso mesmo a escolhi...”.
Como nunca, cada sensibilidade está hoje estacionada à distância (en écart) de outra sensibilidade, como carros distintos num estacionamento imaginário. Em virtude da pandemia nossa sensibilidade é obrigada a sobreviver no espaço de dentro do carro. Não desça a janela. Achtung! Cada sensibilidade se reduz ao espaço íntimo e exclusivo que é o seu.
Ismael e Murilo convidam à experiência dos espaços exteriores, aqueles que, ao guardar a alteridade como força associativa (ou comunitária), convidam perigosamente à aproximação, à fusão com o outro e diferente, que fora minimizada pela vanguarda histórica e tem sido proibida pelas restrições de ordem sanitária.
A partir da suplementação da mente moderna pelo catolicismo primitivo, Murilo Mendes oferece — a seus leitores e aos artistas visuais que queiram se hospedar em sua obra poética — a possibilidade de trabalhar a heteropia, para retomar o conceito de Michel Foucault ao teorizar sobre outros espaços. Murilo — o poema de Murilo — provém a teoria de carne. A sensibilidade reclusa chega a uma aproximação en écart de sua própria intimidade, cuja liberdade lhe é tolhida por motivações racionais que escapam à sua compreensão do mundo e da época que lhe tocou viver.