Nome forte da poesia brasileira contemporânea, a poeta Ana Martins Marques lança em junho seu novo livro, Risque esta palavra (Companhia das Letras). É a sétima obra da poeta. Ela também é capa da edição de maio do Pernambuco, em perfil feito pelo crítico Victor da Rosa e pela poeta Adelaide Ivánova, que irá ao ar em breve.
Leia adiante três poemas que integram a obra.
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Alba
É dia
e daí?
Relógios e amantes
acordam em desacordo.
Por que levantar agora?
A noite não foi cheia de afazeres,
como um dia de escritório?
Não é também labor
uma noite de amor?
Como o corpo desses livros
que lemos no leito
o seu não guardou as marcas
do meu manuseio lento?
Mais vale adiar o dia.
O alarme do celular:
que triste cotovia.
Poema com o som de sua própria fabricação
A partir de Robert Morris, Box with the
Sound of its Own Making, 1961
Não só o som do caderno abrindo-se o som da caneta seguindo
a linha pautada não só o som ritmado das teclas do computador
o som mais forte do polegar fabricando
o espaço
Também o som dos passos pela cidade a música da respiração
do dia o som do sol subindo como a porta das lojas
sendo abertas barulhos dos carros limpando a própria
garganta socos sirenes o som do café fervendo
na cafeteira o som das palavras
não sendo retiradas das coisas
como mariscos de suas conchas
mas esfregando-se nas coisas, polindo-as
de um brilho sujo enquanto o poema vai se fazendo
tarde demais
Ofélia aprende a nadar
Há muita coisa em comum entre
cair de amor
e cair na loucura
e cair num rio
em todo caso
cai-se
da própria altura
veja-se, por exemplo,
Ofélia
cai
mas cai
cantando
trazendo nas mãos ainda a grinalda
de rainúnculos, urtigas, malmequeres
e dessas flores a que os pastores dão um nome grosseiro
mas que as moças denominam poeticamente
"dedo-da-morte"
cercada desses ornatos
como de uma coroa
por um momento
seu vestido se abre
e ela se sustenta
na superfície
envolvida
na correnteza
qual uma sereia
cantando
canções antigas
com os cabelos entrelaçados aos juncos
e aos nenúfares
como se tivesse nascido ali
como se fosse criatura
daquele elemento
(somos nós mesmos piscinas
lagos ou charcos
reservatórios onde águas
se debatem)
quando seu vestido
se torna pesado
ela começa lentamente
a mover os braços
e as pernas
primeiro sem deixar de cantar
depois substituindo o canto
por uma respiração ritmada
mergulhando e levantando a cabeça
e aproveitando-se da correnteza
até chegar à margem
lamacenta
por onde sobe
com alguma dificuldade
carregando o vestido
pesado
há muita coisa em comum entre
cair num rio
e cair em si
e cair fora