AntonioMaria cronica Reproducao.IMS

 

 

Abaixo, você lê uma crônica de Antônio Maria (1921-1964) publicada no periódico carioca O jornal (fechado em 1974) e até então inédita em livro.

Antônio Maria, compositor e cronista, faria exatos cem anos hoje (17). Uma antologia com suas crônicas sairá neste ano pela editora Todavia, organizada por Guilherme Tauil – a quem agradecemos o envio da crônica que você lê adiante.

Na transcrição, apenas atualizamos palavras grafadas de forma datada, mantendo a pontuação da publicação. Saiba mais sobre Antônio Maria e sua obra clicando aqui.

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[1º de setembro de 1962, em O jornal (RJ)]

OS POETAS DO RECIFE

Hoje, ia falar mal de um cara. Mal botei o papel na máquina, me disseram, pelo telefone, que ele iria viajar. Pensei, sem desejar, na possibilidade do avião cair. Então, resolvi falar bem de outro. Do poeta Audálio Alves, pernambucano, que faz sua poesia frente ao mar e frente aos montes.

Não há mais poetas, no Rio. Quase todos (não há nisto a menor alusão a VM) aderiram ao samba-canção e ao “rock”-balada. Os poetas estão mesmo no Recife, como Audálio, dizendo ao mar, que têm sede e, aos montes, que têm fome. Os poetas resultam da ânsia e do mormaço, numa cidade como o Recife. Numa cidade, onde as mulheres não amam, porque é pecado e se casam, para não ter que amar. Numa cidade, onde ainda há casas com portões de ferro e oitões livres. Numa cidade, onde há novenas.

A poesia desse Audálio, entretanto, é (como diz Gilberto Freyre) talássica. É bem verdade que Gilberto não tinha necessidade de dizer isto. Mas a poesia de Audálio é feita de olhos, boca, narinas e mãos abertas para o mar. E se parece, também, com um navio, à procura de um porto e de uma era, para ancorar e mostrar-se.

Não sei de poetas maiores que os da minha terra. A começar por Bandeira, seguindo por João Cabral, passando por Carlos Pena (que passou, coitado) e chegando em Audálio Alves. Recife, “cidade solta entre o mar e o continente”, do cheiro dos sargaços, do cheiro das lavanderias chinesas, do cheiro dos mangues e do ventre de vossas mães católicas, nascem, já órfãos, os seres transfigurados que, mais tarde, serão vossos poetas.

O poeta do Recife é um ser transfigurado. Homens, tocados pela dor e estimulados pelo espanto. Fugitivos, desterrados, adolescentes de rostos tão usados. É assim que eu recordo a face de João Cabral de Melo Neto, tão distante, que virou espanhol.

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