Micheliny Verunschk Reproducao

 

Abaixo você lê um trecho de O som do rugido da onça (Companhia das Letras), novo romance da escritora Micheliny Verunschk (foto). Na obra, a autora dá voz a duas crianças indígenas que, no século XIX, foram raptadas por exploradores europeus e levadas ao Velho Mundo, onde morreriam pouco depois. No Brasil contemporâneo, uma jovem reconhece algo de seu passado ao ver imagens de uma das crianças em uma exposição. 

O som do rugido da onça é o quinto romance de Micheliny Verunschk e está em pré-venda neste link.

 

***

I


Foram muitos de muitos dias por mar e terra. E o tempo em que eles estiveram no mar foi de medo, fome, doença. O mar, eles não sabiam, se afigurava como um grande ajuntamento de todos os rios, que os assustava com sua boca enorme, seu rugir mesmo na calmaria, sua respiração de bicho surdo e feroz por baixo de seus pés. Estremeciam. Tanta água não, nunca haviam conhecido, um espírito assustador em sua baba salgada, esturrando, mas onça é que não. Por vezes o próprio céu invertido em água. Sob seus pés, água que corria, despropositada jiboia; acima da cabeça deles, água exata em ferir, talvez borduna ou flecha em vertiginoso voo. Às vezes, sobre seus corpos, a água em cristais polidos, muito frio, coisas que cortam e matam.

Nenhum deles nunca vira um rio que falasse tantas águas, rio sem margens. Em nenhum dos rios que conheciam, tanta fúria, tanto mistério. Nem o Paranáhuazú, a mãe de todos os rios, a quem os brancos chamam de Amazonas, aquele que guarda o mundo que existe para a vida que se vive depois de morrer, nem ele se apresentava tão perigoso, tão ameaçador. Outrossim, cruzar aquela água infinita e perturbada, imenso rio sem margens, certamente era morrer sem chegar ao lugar dos antepassados. E embora o medo corresse por seus ossos e os fizesse tremer, havia ainda que a grande fera era mesmo a embarcação e aquilo que a colocava em movimento, a carne bruta e ameaçadora dos marinheiros, a força invisível, liame que lhe dera ânimo de existir e que permitia, no intestino do porão, a ânsia, o vômito, a merda já esverdeada e líquida que o lavava e rescendia a podre e, ainda, os insetos e ratos, pragas que alimentavam todo sortimento de moléstias.

O navio, pois bem, grande canoa da morte. Pessoas, plantas, bichos, macacos, kdiziba, tatus, gooi, tamanduás, heehi e, ainda, os Desencantados. Como chamá-los? Iñe-e pudera observar ainda em terra os cientistas em seu trabalho de desencantamento. E logo percebera que não se tratava apenas de matar o bicho. Era outra atividade. Primeiro, levavam sua alma para a pele do papel em tão perfeita conformidade que seria possível dizer que o bicho rastejaria, caso fosse cobra, ou voaria, caso fosse pássaro, para fora daquele frágil limite. Depois, o desencantamento prosseguia. E morrer era só uma parte muito pequena daquilo tudo. O bicho, o bicho mesmo, em força e sangue, era tornado em nada depois que tudo se dava por encerrado. Morto e destripado, o bicho era limpo, sendo raspada da pele a carne já desprovida de poder, e o corpo esvaziado de tudo o que tinha sido um dia, restando um saco mole e triste, que só depois seria reconstruído com palha ou qualquer tipo de enchimento que servisse, recebendo, pouco a pouco, a antiga forma, e sendo assoprada nele aquela outra cara, aquele outro corpo, aquela boca que, aberta, não mais comeria; que, fechada, não mais se abriria: e era daí que surgiria o novo bicho, o outro bicho, muitas vezes inventando um movimento que nunca poderia terminar, endurecido em uma posição, salto ou bote que a partir daquele momento jamais poderia se extinguir. Aos olhos de Iñe-e o desencantamento era uma coisa verdadeiramente assombrosa.

Que vida a deles, a dos Desencantados!

Iñe-e observava tudo aquilo com temor e, se em cada um daqueles bichos procurava uma voz, um movimento, procurava neles também reconhecer os olhos da mãe, do irmão, de qualquer parente que ficara para trás, como se isso fosse possível. Procurava neles até seus próprios olhos. Perguntando dentro de si mesma:
Será assim que tudo vai acabar? Iñe-e paralisada, fixada na mesma posição, eternamente, talvez com um olhar triste, talvez com um olhar surpreso, talvez com um sorriso ao mesmo tempo impassível e engraçado, ou quem sabe lábios apertados um contra o outro, numa tristeza capaz de embaraçar quem venha a me observar em qualquer tempo? E essa larga viagem, em que me levam, é também uma viagem de desencantamento, de destripamento?

Eram coisas que ela se perguntava como se já soubesse quais seriam as respostas, antevendo seu retrato na parede branca de um museu visto por centenas de pessoas que não a conheciam, que não sabiam seu nome ou o que sentira no dia em que seu captor se postara diante dela com material de desenho e tintas, muito pronto para roubar a sua alma e obrigando-a, quando já não era mais natural, a se despir. Pessoas que, mirando seu olhar cabisbaixo, ignoravam que muito dela ainda permanecia ali.

Na tarde em que vira uma grande onça destripada no terreiro, o coração se tornara muito pequeno dentro do peito, minúsculo coração de pássaro sem penas, reduzido a presa caída do ninho. Naquele dia, entre raiva e dor, chorou por si mesma pela primeira vez.

 

II

Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E ainda a história de como permanece em vigilância. De como foi levada mar afora para uma terra de inimigos. E de como, por artes deles, perdeu e também recuperou a sua voz. Preste atenção, essa voz que eu apresento agora não é a mesma voz que ecoava pela mata chamando pelos seus irmãos mais velhos enquanto colhia frutas para levar para a maloca. E muito menos é a voz que foi silenciada por baixo das tempestades e dos gritos do capitão, a voz abafada por vergonha das imprecações incompreensíveis dos cientistas e, depois, contida pelos risos nervosos dos cortesãos e pela impaciência rude das Fraülein.

Tampouco é a voz que ignorou o que diziam sobre ela os jornais e as revistas da época, as cartas escritas em letras flexíveis como o broto do cipó. Essa voz que você ocasionalmente escutará em sua cabeça e que se confundirá com a sua própria voz, ou com a voz da sua filha, ou da criança da mulher vizinha, ou até, quem sabe, com a voz de sua avó, seja ela quem for, não é a mesma voz com que Iñe-e nasceu. Não é aquela que virou pedra em sua garganta quando ela foi viver no grande castelo entre pessoas quase transparentes de tão brancas, suas carnes moles e azedas se movimentando por entre os panos coloridos e brilhantes que, embora bonitos, não poderiam disfarçar o feiume dos seus captores, seus cabelos, a maioria desbotados, carecendo da beleza esplendente que a tinta negra do huito pode dar. Também não foi aquela voz que ela escondeu, tesouro muito bem guardado, para que os inimigos não tivessem nada mais dela.

Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente. E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em apreendê-la. Assim, se há uma recusa em usar a palavra taxidermia e se escolhe usar a palavra desencantamento, há teimosia nisso. E pode ter certeza de que Iñe-e aprovaria esse recurso. Se, em lugar de rio, ela falar muaai ou até Fluss, pode se tratar de uma admoestação a respeito do que lhe fizeram. Para contar esta história, Iñe-e adverte que não é possível ser tolerante. Ademais, usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor. É possível envenená-la, zarabatana, como fazem os guerreiros do povo miranha com o curare preparado com o suor e sangue de suas mulheres. É possível incendiá-la, curare quente e amargo. E de todo modo, como já se disse, é possível usá-la como se quiser.

Essa é a voz do morto, na língua do morto, nas letras do morto. Tudo eivado de imperfeição, é verdade, mas o que posso fazer senão contar, entre as rachaduras, esta história? Feito planta que rompe a dureza do tijolo, suas raízes caminhando pelo escuro, a força de suas folhas impondo nova paisagem, esta história procura o sol.

Quando Iñe-e morreu ela estava com doze anos de idade. Então, essa é a voz da menina morta. E se alguém perceber nela um acento rascante, e acaso a confundir com uma voz muito velha que se eleva de uma sepultura congelada, garanto que é da infância que essa voz brota, nasce e se levanta. E toda voz da infância, sabe-se, é selvagem, animal, insubordina os sentidos. E agora que já se sabe, sigamos pelo começo de tudo. Por aquilo que foi determinado como o começo de tudo. E embora alguém possa refutar e dizer que esta história começou com um rei que, com o bisaco cheio de moedas da ávida burguesia, resolveu lançar-se ao mar, aquele mesmo, o Tenebroso, eu desminto e digo que tudo começou mesmo em Iñe-e.

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