elis gal hana

 

Este é um trecho de Não se assuste, pessoa! As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar, do pesquisador e crítico, Renato Contente. No ensaio, ele investiga como se deu a transferência simbólica de Gal Costa para Elis Regina de um protagonismo pela reação estética à ditadura militar. O livro pode ser adquirido no site da editora Letra e voz. 

 

Poucas intérpretes da música popular brasileira atuaram sistemática e enfaticamente contra o regime militar (1964-1985), através de seus projetos artísticos, como Gal Costa e Elis Regina. A partir de motivações distintas, ambas vincularam fortemente suas imagens à resistência contra a repressão, através de discos, espetáculos e entrevistas que demarcavam um posicionamento político específico. Cada uma vinculada a uma rede de compositores, intelectuais e produtores que correspondiam a uma determinada vertente ideológica, artística e comportamental da época, as duas artistas marcaram a ferro suas identidades na linha do tempo da música brasileira, com seus anseios estéticos, as temáticas que lhes eram urgentes e os modos de interpretação que criaram e desenvolveram ao longo de suas carreiras.

A atribuição de uma “voz política” feminina durante a ditadura, no entanto, não pertenceu a ambas simultaneamente. Se Gal foi considerada a porta-bandeira da resistência no período inicial do regime, particularmente nos sombrios anos que seguiram o Ato Institucional nº 5, o AI-5, outorgado em dezembro de 1968, Elis tomou as rédeas da oposição política à ditadura no campo musical brasileiro em fins de 1975, quando a primeira já maturava um processo de apropriação de uma estética menos engajada. Elis ocuparia esse posto simbólico até pouco antes de sua morte precoce, aos 36 anos, em 1982, com uma série de shows e discos que compunham uma reação estética à repressão.

Sob esse aspecto, podemos lançar mão da denominação do historiador Marcos Napolitano (2010) em relação às duas fases da música popular brasileira ao longo da ditadura militar: a canção dos anos de chumbo (1969-1974) e a canção da abertura (1975-1982), cujas principais representantes, como argumentamos neste ensaio, são Gal Costa e Elis Regina, respectivamente. Para além dos anseios pessoais das duas artistas, entretanto, a transferência progressiva de um status de protagonismo político de uma para a outra denota uma negociação nem sempre estável de ambas com as demandas de determinados setores da sociedade, como as frações da imprensa, dos estudantes universitários e dos intelectuais que se posicionavam contra o regime. Setores estes, aliás, estratégicos para a legitimação política e mesmo artística (através da crítica) de seus trabalhos.

É importante ter em mente que, embora tenham sido figuras popularmente conhecidas durante a ditadura, tanto Gal quanto Elis tiveram suas produções no período analisado neste ensaio voltadas para um público de classe média, em grande medida intelectualizado, que frequentava seus espetáculos e consumia seus discos. Portanto, a “voz política” que ambas representaram em momentos distintos traz por si só uma significativa restrição de alcance de público e mesmo de um almejado engajamento popular. Em diferentes momentos de suas trajetórias, Gal e Elis entraram em negociação com essa contradição, entre o reconhecimento da crítica especializada e a manutenção de um público cativo de classe média e/ou intelectualizado, de um lado, e a desejada popularização de seus trabalhos, de outro, o que permitiria ampliar o raio da potência política de seus discursos.

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A persona artística que Gal vinha desenvolvendo até a partida dos amigos para o exílio tinha uma conexão profunda com Caetano Veloso. Uma conexão que antecedia até mesmo o encontro dos dois, amalgamada pelo deslumbramento diante do acontecimento alienígena que havia sido o contato com João Gilberto. Não que Gal fosse dependente criativamente de Caetano, ou vice-versa, mas havia uma dinâmica mútua de estímulos entre os dois potente e misteriosa, propensa a arriscados radicalismos que os conduziriam à almejada grande beleza.

Essa ligação joão-gilbertiana se desdobrou em uma das parcerias mais singulares da MPB. Sobretudo até o início da década de 1970, a relação artística entre Gal e Caetano se deu através de um curioso jogo de espelhos. Não apenas musical, mas também visual, através de penteados, roupas e um mesmo batom vermelho. Antes mesmo de Domingo, Gal já era um alter ego feminino do compositor. Talvez por isso, ela também fosse uma espécie de protótipo de modernidade para o qual ele projetava os experimentos estéticos que o inquietavam. O próprio autoritarismo terno do eu-lírico de Baby ao seu interlocutor, em relação ao que “você precisa” para obter um consumo cultural moderno, evoca esse jogo de espelhos dos dois corações vagabundos (Contente, 2019, p. 5).

Caetano seria um componente importante na construção das personas artísticas que sucederiam a Gracinha bossanovista. Nos anos 1960, a identidade artística de Gal chegou a ser objeto de disputa entre ele e Guilherme Araújo. Conforme relatou Caetano (1997, p. 93), o empresário via em Gal uma nova rainha do iê-iê-iê, uma nova forma de cantora comercial, “uma super Wanderléa com um repertório inteligente”. Durante as gravações de Domingo, já em contato com importantes influências conceituais do Tropicalismo, como José Agrippino e Rogério Duarte, Caetano projetava na cantora uma persona artística articuladora de rupturas, distante de um modelo bossanovista estrito. Nos planos dele e de Duarte, em termos de repertório, ela deveria superar as oposições vigentes no campo musical brasileiro, entre a MPB e a Jovem Guarda, a bossa nova e o samba tradicional, e a “sofisticada música moderna” e a “música comercial vulgar”.

As Gals que Guilherme e Caetano desejavam construir convergiam em uma ruptura com o paradigma joão-gilbertiano, por assim dizer, mas tinham propósitos distintos. Em comum, projetavam na cantora um repertório diferenciado, “inteligente” (talvez um engajamento que pudesse superar a caricatura que havia se tornado o nacional-popular), propositivo de rupturas discursivas e estéticas que eram caras a eles. Na visão de Caetano (1997, p. 93), seu projeto para Gal não deveria ser compartilhado com o empresário para não “contaminar a nobreza de propósitos do projeto rogeriano com o que corria o risco de ser mero comercialismo empresarial”. Como os dois testemunharam depois, a forte apropriação tropicalista por parte de Gal permitiu que ela absorvesse componentes dos dois projetos sem se tornar um pastiche de nenhuma dessas ideias.

Gal tentaria driblar o peso das contribuições de Caetano e Guilherme para defender sua própria autonomia e autenticidade, colocada em xeque por parte da imprensa. Em entrevista a O Pasquim (11-17 dez. 1969), quando os amigos já amarguravam o exílio, uma das perguntas foi enfática: “Você é filha de Caetano Veloso ainda ou já tem vida própria?”. Nas palavras da cantora: “Acho que já tenho vida própria. Eu sempre acompanhei o trabalho de Caetano e Gil, sou muito ligada a eles e surgi exatamente na época que eles fizeram uma revolução na música. Mas com a minha explosão no Festival, com Divino maravilhoso, acho que consegui a minha personalidade. Eu estou na minha. Eu sei que sempre fui muito ligada à imagem de Caetano, por causa de meu cabelo e tudo”. Na mesma entrevista, também perguntaram até que ponto ela havia sido influenciada por Guilherme Araújo. Gal argumentou que não foi influenciada por ninguém, já que “a coisa foi tão forte e violenta que não poderia ter sido feita por pressão de ninguém”: “Foi uma coisa que realmente me atingiu. Eu cantava toda inibida, encolhida, nem olhava pro público. A mudança foi radical. Eu explodi mesmo”.

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O espetáculo (Falso brilhante) foi notificado no Dops de São Paulo, em documento especial de 21 de abril de 1976. Mas, como sublinha Lunardi (2011, p. 183), apesar do forte engajamento do texto da obra, os militares não justificaram o show como sendo subversivo. Em vez disso, constava no documento oficial: “Para o expectador (sic) que vai ao teatro à procura de entretenimento, dificilmente distinguirá qualquer coisa relacionada à subversão, ainda que no terreno filosófico ou cultural”. Na leitura de Lunardi, ou os militares não absorveram o sentido metafórico crítico do espetáculo, ou fizeram uma concessão a uma artista que, ao menos nos termos de vigilância do regime, estava supostamente sob controle.

Conforme constatamos, um outro documento foi produzido pelos agentes da ditadura antes da estreia do espetáculo, baseado integralmente na leitura do roteiro submetido ao diretor da Divisão de Censuras e Diversões Públicas, em ofício de código 5256/75-SCDP/SR/RP (Arquivo Nacional). O roteiro foi enviado à censura federal no dia 3 de dezembro de 1975, tendo retornado aos artistas, com o aval para ser apresentado sem interferências, no dia 19 do mesmo mês, dois dias depois da estreia. Felizmente, o veredito não poderia ter sido mais ingênuo e errôneo, como segue: “Show musical, de autoria de Elis Regina e outros artistas nacionalmente conhecidos, e que apresentam vários temas de nosso cancioneiro musical, de muito bom gosto e de objetivos de fundo educativo, tentam apresentar um espetáculo de nível médio e de caráter cultural. As letras musicadas são de bom teor lítero-psicológico, além de levarem a mensagem de confiança para qualquer tipo de plateia, face à linguagem simples e direta. Nada desperta, senão bom gosto e alguns momentos de lazer. CONCLUSÃO: Pelo exposto, somos pela liberação sem restrição de qualquer exigência legal quanto à faixa etária”.

Na celebração da ducentésima apresentação de Falso brilhante, em entrevista à revista Veja de 25 de outubro de 1976, falou mais abertamente sobre a dimensão política do projeto: “de repente o espetáculo saiu da marginalidade para atingir muitas pessoas. Aí é que eu sinto a responsabilidade, e a minha função social como artista começa a tomar proporções”. No decorrer da temporada, possivelmente devido ao burburinho contínuo em torno do show e a suas declarações, Elis voltaria a ser alvo fixo dos militares. No período em que apresentou Transversal do tempo (1977-1978) e Saudade do Brasil (1980), quando atuou ativamente a favor da redemocratização do país, a cantora teve seus passos atentamente vigiados, tendo sido fichada duas vezes em 1977, uma em 1979, outra em 1980 e até em 22 de janeiro de 1982, ou seja, três dias depois de sua morte.

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