“O homem é sempre o progresso (...) A mulher é conservação”, “A inteligência da moça é em geral reprodutora (...) nunca é capaz de iniciativa, de combinação de imagens, dados concretos e abstratos que definam a verdadeira inteligência” - Esses são trechos da crônica A amanuense, em que Lima Barreto dissertou sobre os atributos de uma mulher para as funções de copista, de secretariado. Mas como conciliar o autor dessas frases com o homem que defendeu o voto feminino e lutou contra o feminicídio, como conciliar com o homenageado de uma Flip que tem se mostrado tão atenta à questão da causa feminista?
Conversamos com a escritora Luciana Hidalgo, convidada oficial da Flip e autora de dois livros que dissecam a vida e a obra de Lima - a ficção O passeador e a pesquisa Literatura da urgência: Lima Barreto no domínio da loucura -, para entender as contradições encontradas em suas obras.
“O mundo de Lima era muito pouco habitado por mulheres”, lembrou Luciana. “A mãe morreu quando ele tinha seis anos e ele só tinha uma irmã. Lima não quis se casar porque acreditava que o casamento era uma espécie de negação da obra. E isso era um pensamento comum no século XIX. Balzac e Flaubert, por exemplo, não se casaram. Mesmo com a pouca familiaridade, ele era um homem muito interessado, curioso até, em se tratando do feminino”.
O biógrafo Francisco de Assis Barbosa escreveu que Lima Barreto frequentava prostíbulos, mas acabava saindo deles enojado. “Era muito difícil para ele conciliar o desejo e a timidez. Era um homem de paradoxos, que trazia os preconceitos do seu tempo. Mas o que acho mais legal no trabalho do Lima é o fato de, se há comentários machistas por um lado; por outro ele fez crônicas maravilhosas, como Não as matem, denunciando o feminicídio”, continuou Hidalgo.
A escritora pontuou ainda outras contradições de Lima Barreto, como seu desejo de fazer parte da aristocrática Academia Brasileira de Letras (instituição que tentou ingressar por duas vezes).
“Ele fazia toda a crítica à sociedade, mas tinha suas vaidades, como foi o caso do seu desejo de ser acadêmico. Todos nós temos nossas vaidades e ele não era exceção. Ontem, após a minha mesa na Flip, eu estava falando com a mediadora Rita Palmeira e ela disse que Lima Barreto estaria gritando ‘Fora Temer’ junto com o público quando da leitura do Lázaro Ramos na Praça da Matriz. Eu disse que não sabia se ele estaria gritando ‘Fora Temer’. Ele era um homem que via tantas coisas, que sempre era do contra, que talvez tivesse inventado outro grito de guerra”.
Ela ainda pontuou que a retomada da figura do Lima Barreto nesse momento do Brasil é muito significativa. Se a sociedade da belle époque brasileira não tivesse abafado todas as denúncias que ele fez contra o racismo, contra a desigualdade social, contra o apadrinhamento político, talvez estivéssemos vivendo um tempo mais avançado. Lima foi um homem que escreveu o tempo todo contra os nossos equívocos como nação. De certa forma, como muitos de nós estamos fazendo hoje nas redes sociais, tentando falar, tentando denunciar. Nessa perspectiva, acho que esses ativistas hoje são todos Limas Barretos”.