Ana Martins Marques rep.da.internet flip2017

 

A poeta mineira Ana Martins Marques alugou por um mês o apartamento do amigo, o também poeta Eduardo Jorge, em Belo Horizonte, enquanto ele estava em Paris. Ambos vivendo no necessário artificial de uma habitação temporária, começaram a traçar um diálogo, que resultou no livro de poemas em parceria Como se fosse a casa (uma correspondência), pela Relicário Edições. A obra é lançada neste sábado, às 19h, na Casa Amado e Saramago, durante a Flip. Uma das principais autoras em atividade no Brasil, Ana conversou com o Pernambuco sobre, entre outras coisas, o direito de se abandonar um “lar”.


O seu livro com o Eduardo Jorge começa com um texto seu falando da prerrogativa de uma essa prerrogativa de parceria (Duas pessoas dançando/ a mesma música/ em dias diferentes/ formam um par?). Esse é seu segundo livro publicado em parceria. Para você, quais possibilidades esse tipo de experiência abre para o poeta?

De fato, os dois últimos livros que lancei foram escritos em dupla: Duas janelas, com o Marcos Siscar, editado pela Luna Parque, e Como se fosse a casa (uma correspondência), com o Eduardo Jorge, que sai agora pela Relicário. O processo de escrita dos dois livros foi bem diferente, no entanto: Duas janelas foi escrito a partir de um convite da Marília Garcia e do Leonardo Gandolfi, editores da Luna Parque, que estavam lançando uma série de livrinhos feitos por duplas de poetas. No caso dos poemas que passaram a compor Como se fosse a casa, a troca dos poemas antecedeu qualquer ideia de livro. Por isso, gosto de brincar dizendo que estamos, Eduardo e eu, lançando um livro que não escrevemos, embora isso não seja bem verdade, já que houve todo um processo de seleção, arranjo e reescrita dos textos que trocamos.

Apesar das diferenças, algumas questões se colocaram para mim nos dois processos de escrita: o modo como escrever com e a partir das palavras de outra pessoa acaba por nos levar a percorrer novos caminhos de escrita, que, curiosamente, não são caminhos que necessariamente nos aproximam da escrita do outro. Embora haja, me parece, uma espécie de contágio, esse contágio não tende necessariamente à semelhança: ao contrário, nos dois casos, acho que as diferenças nos modos de escrita ficaram flagrantes, o que, do meu ponto de vista, torna o processo bem mais interessante...Outra questão que se colocou para mim de forma muito nítida foi a do endereçamento, o modo de lidar com um texto que a princípio tem um destinatário certo, mas que, uma vez publicado, passa a se endereçar a todos, ou, antes, a qualquer um que tomar esse livro em mãos, tornando-se assim também destinatário dessa correspondência.


Esse livro novo discorre sobre uma habitação temporária. No caso, um espaço criado artificialmente para que se habite por um tempo específico. Noto que nos seus livros há imagens que acabam voltando. Entre elas, a dicotomia entre a casa e a viagem. O que essas imagens lhe trazem tanto para que elas retornem?

As imagens da casa são muito recorrentes nos meus poemas. Nos meus dois primeiros livros [A vida submarina e A arte das armadilhas], há poemas que giram em torno dos espaços da casa e dos objetos domésticos. Ao mesmo tempo, são poemas que muito frequentemente revelam o que há de limiar nesses espaços e objetos, poemas que se detêm nos lugares de passagem e no modo como esses objetos nos colocam em contato com o que está fora. Nesse sentido, embora de fato haja uma espécie de “dicotomia entre a casa e a viagem” (muito nítida no poema de abertura do meu segundo livro, por exemplo, que começa com os versos “entre a casa/e o acaso"), acho que a própria casa já é uma espécie de “casa em viagem”. Em Como se fosse a casa, essa instabilidade da casa se acentua: o que aparece aí é uma morada provisória, jeitos muito desajeitados de morar. São dilemas que nos acompanham sempre, acho: a necessidade de habitar, de pertencer, de fixar-se, e ao mesmo tempo os planos de fuga, os desejos de mobilidade e mudança.

Ao mesmo tempo, quando vemos, como hoje, tantas pessoas morando nas ruas, nas condições mais precárias, nos damos conta, como dizem uns versos desse livro, “que, como disse Jean Améry sobre a pátria,/uma casa é aquilo de que menos se necessita/quanto mais se tem”. Às vezes, são as casas que abandonam as pessoas e, no entanto, ter uma casa, nem que seja para a abandonar, deveria ser um direito assegurado a todos.


Em O livro das semelhanças uma das grandes marcas foram os metapoemas, sua escrita falando sobre a escrita, e nesse livro novo você diz que está criando uma língua para dizer o que precisa - (Espera: estou inventando uma língua/ para dizer o que preciso). Você pode falar um pouco sobre a importância de escrever sobre escrever?

Nos meus dois primeiros livros, há mesmo muitos poemas sobre poemas, e n’O livro das semelhanças há uma série de poemas que se volta para o próprio livro e seus “lugares” (capa, epígrafe, dedicatória, índice). Sempre senti que esses poemas funcionavam para mim como um jeito de “afinar os instrumentos”, e ao mesmo tempo como uma forma de evitar tratar a linguagem como algo transparente, instrumental, um jeito de prestar atenção no caráter material da linguagem, testar sua resistência, sua densidade... Neste último livro, especificamente, retorna muito frequentemente a questão da língua. Os poemas do Eduardo, em especial, trazem essa questão não só como tema, mas também pela incorporação de palavras ou frases em língua estrangeira e por uma certa fratura da língua materna. Tenho a impressão de que nos meus poemas, como nesse que você citou, a dimensão metalinguística aparece associada, sobretudo, à ideia de que uma nova língua deveria surgir para dizer as coisas novas que vivemos, como se cada a cada novo lugar, a cada novo amor, a cada novo começo, ainda que no próprio país e no interior da própria língua, fosse necessário conquistar uma língua nova para dizer, ao mesmo tempo que cada coisa passada, para ser compreendida, exigiria uma espécie de esforço arqueológico, uma tentativa de compreender uma língua extinta, quando dela só restaram fragmentos...

Acho que esse pequeno fragmento que você cita também remete a uma ideia, que sempre achei sedutora, apesar do seu traço romântico, do poema como algo que se escreve numa língua inaugural, uma espécie de língua estrangeira que só existe ali, naquele poema, e que é preciso aprender a ler a cada vez.