35384310003 a59faa0019 z

 

A obviedade é a única trilha a ser percorrida em momentos agudos. E não é obvio que Lima Barreto é a nossa cara? Quando Lázaro Ramos deixou a Igreja da Matriz (palco da programação oficial da festa nesta edição), em direção à tenda do telão (na área externa), aconteceu o ápice da abertura da Flip na noite de ontem (26). O ator leu para o público um trecho de A política republicana, em que o Lima Barreto fez uma espécie de autópsia de primeira hora da novíssima república brasileira, que nasceu (vejam só) a partir de um golpe – e golpes parecem ser a única vazão de ruptura na nossa história, que sempre preferiu a chave da (e aqui vai um eufemismo) da negociação.

“A república do Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e para que não haja divergências, há a ‘verba secreta’, os reservados deste ou daquele ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência”, escreveu Lima. Ao ler o trecho, Lázaro foi ovacionado com o grito que o país “escreveu” em si há um ano e que se esvazia e retoma sentido a cada novo golpe de notícias, a cada novo tremor de “urgente” gritado pelas redes sociais -- o “Fora Temer”.

Já é lugar comum esperar algum tipo de pulsar político das aberturas da Flip (“não desejamos mais uma literatura contemplativa”, escreveu certa vez o homenageado), e nessa edição a expectativa se tornou o roteiro da linha do tempo de Lima Barreto interpretada por Lázaro, a partir da recente biografia do homenageado escrita por Lilia Moritz Schwarcz.

Em sua fala na abertura, Lilia pontuou sua leitura a partir da chave de investigação proposta para guiar sua pesquisa - compreender o que escreveu Lima a partir do que viveu Lima. Para além da questão do valor literário, o importante foi traçar a força da identidade e a força do corpo, a decomposição do corpo, como as armas possíveis da luta de grupos marginalizados - e não é isso o que justamente estamos fazendo nesse Brasil 2017?

O Brasil dos doutores, do funcionalismo público, do eufemismo das negociações, da loucura anônima colada à pobreza e onde “é triste não ser branco” foram expostos ao público sem sutilezas, mas com a ironia que embrulha a garganta típica da literatura de Lima Barreto. Vale ressaltar que a didática linha do tempo proposta pela curadoria para a abertura foi uma ótima ideia. Afinal, Lima Barreto precisa ser mais lido, mais esmiuçado, sobretudo quando comparado aos outros autores que foram homenageados pela Flip nos anos anteriores.

Fiquei pensando, só pensando, se esse Lima Barreto, com a sua negritude e com sua marginalidade tão expostas, tão fora do armário para o padrão Flip, tivesse antecedido a homenagem para Ana Cristina Cesar - o tímido alvo da festa em 2016… Talvez tivéssemos tido uma Ana C mais lésbica, menos misteriosa e com mais carne exposta contra a repressão do que aquela que nos foi servida. E um público mais envolvido no evento - como ocorreu durante toda a leitura feita por Lilia e Lázaro.

Está mais do que claro que não, não desejamos mais uma literatura apenas contemplativa.