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A palavra é um dos grandes temas da obra de Laura Erber nas artes visuais. Agora, essa artista, poeta e ensaísta carioca estreia com um romance justamente sobre o mundo da arte. Esquilos de Pavlov(Alfaguara) acompanha a trajetória de Ciprian Momolescu, jovem romeno que viaja à Europa com bolsas artísticas, mas parece desencantado com a arte — ao menos com o mundo da arte. Esta, porém, não é a única relação do personagem que está em jogo, mas principalmente aquela com o mundo: uma relação entre a desilusão, o humor e a tentativa de caber em algum lugar.

 

O livro se constrói a partir de uma coleção de esboços, anotações e instantâneos. Porém, o uso de imagens no romance, a discussão em torno da arte e esse personagem que narra/analisa a própria trajetória de um ponto futuro, mas que ainda assim é o olho do furação, não são nada frutos do acaso — dão, sim, sequência a um trabalho que já vinha se desenvolvendo e ao prazer que Laura encontra nas estórias.

 

Esquilos de Pavlov surgiu a partir do nome do personagem. Como Ciprian Momolescu se apresentou nesse momento inicial?

Começou como uma brincadeira, um nome próprio impróprio, enfim, meio jocoso... Usei por um tempo como um tipo de heterônimo no Facebook, lá comecei a experimentar uma primeira pessoa narrativa que já não correspondia a mim mesma, embora não fosse tampouco um disfarce. Não sei explicar, mas esse nome deflagrou um processo, talvez tenha desreprimido minha vontade de escrever ficção...

 

Como escreve o crítico Kelvin Falcão Klein sobre Esquilos, o livro não possui “aquele peso romanesco tradicional de costura e ligação”. Este modelo está superado?

Sim e não. Sim se você se refere a romances em que esses elementos se contentam em fazer a narrativa avançar e dão conforto ao leitor — ao leitor conservador, claro, porque um leitor menos condicionado em geral fica entediado com essa cozinha romanesca. Mas sempre haverá contraexemplos, autores que usam a costura de um modo enfático ou mesmo barroco e então o resultado pode ser fascinante. Depende muito dos exemplos.

 

O fato de recusá-lo implica em maior liberdade na escrita ou é um processo igualmente “cerebral”?

Sua pergunta parece pressupor que uma escrita livre é uma escrita espontânea ligada aos apelos do corpo, mas cérebro também é corpo, é uma máquina ultrassensível. Não vejo oposição entre uma escrita livre e uma escrita cerebral, porque para liberar a linguagem em geral você precisa de algum tipo de constrangimento, como nos livros de Georges Perec. E disse uma coreógrafa que a mente é um músculo, é preciso exercitá-la, alongá-la. Talvez a literatura seja um exercício de alongamento. Mas também posso te responder de outro modo: dizer que cheguei à prosa de ficção pela via da poesia, pela descontinuidade do verso. Para mim a liberdade de escrever prosa passa pelo fetiche da frase, mas não para criar algo muito puro ou muito lírico, talvez algo entre isso, que me permita jogar com as tensões entre continuidade e corte, entre o prosaico e a voragem, para usar uma ideia oswaldandradiana. No início foi estranho e resisti um pouco em assumir para valer esse novo espaço de escrita. O romance é bem menos controlável que um poema, mas me interessava certa sujeira que a linguagem romanesca pode acolher.

 

O uso de imagens no livro é mais evocativo do que ilustrativo. Qual era seu objetivo?

Não sei se é sempre evocativo, é variado, e um pouco tortuoso, às vezes documental. Muitas imagens antecederam o texto, é preciso dizer que antes do romance havia uma pequena coleção de imagens mais ou menos aleatórias, uma coleção sem um denominador comum, que eu vinha fazendo durante viagens: fotos que comprei em mercados de pulga sem uma justificativa clara mas porque algo nelas me atraía, e também imagens de arquivos pessoais. Ciprian Momolescu acabou por se tornar o falso denominador comum dessas imagens. Depois, ao longo da escrita do livro, acabei pedindo “doações” de imagens a alguns amigos. Minha ideia era criar espécies de encontros desencontrados, jogar com a possibilidade-impossibilidade de nexo, e expor um pouco a nossa tendência em ver sempre um nexo afirmativo ou explicativo entre o que a imagem mostra e o que o texto diz. Não existe uma resposta definitiva, quer dizer, não existe uma maneira certa de associar texto e imagem. É um convite para se pensar essa relação como algo não resolvido.

 

Por que optou pela prosa de ficção para tratar da arte contemporânea, ao invés de um ensaio, por exemplo, gênero em que você também transita?

Porque estava lidando com o que não é documentável, o que está latente. A história e a crítica de arte em geral lidam com o que existe, e me interessa pensar essa zona de sombra, em que o que existe é ativado pelo que não existe de fato mas existe como possibilidade. E porque queria captar o presente, não apenas o presente do narrador, mas na sua dimensão de contemporaneidade. Do que estamos falando quando falamos de contemporâneo? O contemporâneo está envelhecendo e o tempo é um animal que não para de se mexer... A vida de Ciprian e o seu olhar revelam e questionam um determinado modelo de vida artística, no que ele tem de paradoxal. Eu realmente não queria trabalhar desde um ponto de vista exterior, de fazer uma avaliação desde fora, queria criar uma intimidade crítica e afetiva com esse mundo, mostrando o descompasso entre uma certa ideia da arte contemporânea e a prática da sua circulação. Por isso um narrador-artista que vive em trânsito mas se sente aprisionado, e o seu processo de isolamento, a combinação entre frenesi e tédio, e um certo desejo — utópico ou desesperado, ou os dois — de superar a própria ideia de arte, ou de fazer uma arte que já não se apresente como tal, quer dizer, que prescinda do circuito e dos espaços de exposição e legitimação, uma espécie de pós-arte... mas a palavra não é muito boa. Esses questionamentos já existem há várias décadas, de forma mais ou menos dispersa e intermitente, e a referência no livro ao artista japonês Akasegawa Genpei e à Arte Secreta que faziam tem a ver com isso.

 

Em resposta a um comentário de seu pai, Ciprian devolve: “A pergunta não é: será que caibo no mundo ou entalo? Mas: será que caibo em mim mesmo ou afundo?”. O que é para você caber em si mesmo?

Prefiro não responder. Mas a resposta passaria pelo reconhecimento de que somos mais fraturados do que imaginamos. O pronome “eu” nos dá a ilusão de uma unidade que não existe.

 

Esquilos de Pavlov pode ser visto como uma continuação de seu trabalho, que antes tinha o foco nas artes visuais, mas que já se caracterizava por um vai e vem entre diferentes linguagens e pela relação (e seu questionamento) entre palavra e imagem. Em que momento isso lhe chamou atenção?

Isso sempre esteve presente, pelo menos acho que esteve. Sim, acho que os Esquilos não são uma interrupção, são parte de uma pesquisa que se concretiza de diferentes maneiras. A relação entre o campo visual e a palavra (literária ou da fala cotidiana) foi que me levou às artes visuais, sempre me interessei em tornar visível nossa relação com as palavras, tratando a linguagem como algo que tem presença, que pode ser leve ou pesada, que pode quebrar, que pode nos quebrar ou sufocar. Para articular isso eu precisava sair do campo estritamente literário, onde essas relações em geral ou são mera especulação abstrata ou geram uma compreensão metafórica. O vídeo e o desenho me permitiram materializar situações da nossa vida na e com a linguagem. Por outro lado, sinto que a arte contemporânea tem uma enorme carga ficcional não aproveitada, está saturada de microrrelatos, de estorietas que são tão importantes quanto as obras. O livro surge também daí.

 

Há algo que a literatura lhe propicie, enquanto autora e leitora, que outras formas de arte não cumpram?

Acho que a intimidade entre texto e leitor, esse curto-circuito é difícil de definir... E depois, bem, o livro é um objeto enfeitiçado, realmente maravilhoso, ao mesmo tempo portátil e infinito...

 

“O lugar de onde falo é um nada bem no meio de tudo.” Pode-se pensar que a história (que se passa dos anos 1980 ao começo do século 21) reflete sobre as influências e consequências da globalização no mundo da arte e no indivíduo. Ler o romance é entrar no seu trânsito contínuo por universos em movimento, vendo as coisas com “poeira nos olhos”. O ato de escrita lhe ajuda a refletir sobre o mundo?

Penso na escrita de ficção como essa possibilidade de criar uma intimidade crítica, gostaria que fosse assim.

 

A proposta da senhora Pavlov de que a arte deve “atender às necessidades poéticas, políticas e estéticas da nossa época” é algo que te preocupa?

Não assim nesse tom tão retórico e pomposo. Mas pensar na necessidade da época, entender que toda época precisa de uma tradução em termos de linguagem artística, que uma época é feita dessas traduções, quer dizer, ela é impensável e intragável sem isso, enfim, tentar entender que necessidade é essa e que imagens e textos são esses, acho isso muito mobilizador. Carlito Azevedo diz que nenhum poema é mais difícil do que a sua época, e a nossa tem um cheiro de roupa usada e aterrissagens de emergência, pessoas afogadas numas ideias estranhas de felicidade. Mas como diz aquela canção da Laurie Anderson, vamos aguentar, e se não conseguirmos aguentar, vamos aguentar mesmo assim. O tempo em que se vive é sempre confuso e em muitos sentidos ilegível, e só muito de vez em quando ele projeta de si mesmo uma imagem que conseguimos identificar com o que os alemães chamavam de “espírito da época”. Poder esquecer um pouco as necessidadezinhas pessoais ou autorais, acho bacana, fundamental. Quer dizer, você não faz arte ou literatura apenas para satisfazer a sua necessidade expressiva ou autoral, mas para tentar atender uma necessidade mais misteriosa, que é e não é sua. Como um pintor de ícones medievais que era trabalhado pelo divino e funcionava como uma espécie de mediador entre dois mundos, o artista hoje talvez seja sempre o mediador entre a necessidade da época e a necessidade que a sua arte impõe. Pelo menos idealmente.

 

Vivendo entre o Brasil e a Europa, como esses diferentes contextos afetam seu trabalho?

Hoje vivo no Rio, sou professora na UniRio, tenho filhos aqui, casa etc. Mas o livro foi uma espécie de digestão retardatária da minha própria experiência de vida em residências artísticas. Esse sistema de residências é um modo muito disseminado e importante de financiamento da arte contemporânea, e ao mesmo tempo pouco discutido. Esses artistas — e há muitos vivendo durante anos nesse esquema — ficam meio ocultados numa zona de sombra, alguns depois somem completamente ou são absorvidos pelo mercado de trabalho convencional, e uns poucos e raros caem nas graças de um importante e poderoso curador. Mas em geral esse esquema é um beco sem saída, porque o artista roda, roda, roda, mas não encontra um sistema de legitimação. E não é preciso muita perspicácia para ver que apesar de todo o discurso da globalização, grande parte da arte contemporânea depende de sistemas de valoração muito locais.

 

 

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