entrevista

 

A Literatura como possibilidade de apreender a realidade não basta para tratar da obra de Zulmira Ribeiro Tavares. Questionar — e não só a realidade, mas também o leitor e, quem sabe, a própria escritora — é intenção mais condizente com a autora de Cortejo em abril, Joias de família e Vesúvio, entre tantos outros. Ou, talvez, nada disso. É difícil precisar o que move e o que propõe esta autora nascida em São Paulo, em 1930, e que já se aventurou por tantos gêneros literários. No entanto, é a sensação de questionamento, provocação e desafio que acompanha o leitor de Região (Companhia das Letras), o mais novo livro de Zulmira e que apresenta contos, ficções breves, um ensaio — que traça uma ligação entre Gogol e Monteiro Lobato — e poemas produzidos desde os anos 1970, quando de sua estreia na Literatura.

Entre trabalhos já publicados e inéditos, textos de poucas linhas certeiras ou várias páginas mais herméticas, encontramos a crítica às convenções sociais, a fragilidade das verdades e a existência humana ironizada. Nesta entrevista, concedida via e-mail, a escritora refuta marcas que vêm acompanhando sua Literatura — como a de retratista da sociedade paulista e investigadora das contradições da sociedade brasileira — e trata da concepção de Região, regida por um olhar crítico, de “parecerista privilegiada” e “revisora atenta”.

 

É curioso como nos reconhecemos tão bem nas contradições da sociedade brasileira retratada nos textos de Região, que cobre principalmente sua produção da década de 1970 aos anos 1990. Desde então, mudamos tão pouco assim?

Eu pessoalmente me reconheço apenas em alguns textos de ficção de várias épocas e autores, sem concluir o quanto mudamos. O nosso reconhecimento naturalmente participa de uma humanidade comum, mesmo se através de modificações substanciais na vida em sociedade. 

Tendo revisto sua produção do período para organizar o livro, é possível apontar o que mudou no seu olhar de narradora em relação à escritora de hoje? Esteve tentada a fazer muitas modificações durante o processo?

Não, de forma alguma. Se assim o fizesse os textos seriam outros. Apenas meu olhar se tornou mais crítico e o distanciamento levou-me a alguns cortes e pequenas substituições. Como se eu fosse ao mesmo tempo uma parecerista privilegiada e uma revisora atenta.

A senhora afirma que Vesúvio não foi um livro pensado, mas que se construiu ao longo dos anos. Assim também se deu a organização de Região? Como é seu processo de escrita, tendo em vista que ela abrange romance, novela, crítica, ensaio e textos mais breves de ficção?

Vesuvio como livro não foi pensado, contudo cada texto que há nele foi escrito e modificado quantas vezes julguei necessário. Até hoje, por exemplo, há um texto meu inédito ao qual falta alguma coisa que ainda não resolvi. Outro exemplo, o texto recente, Leituras, que enviei para o jornal Cândido, era bem recente, deveria ainda ficar em compasso de espera. Depois de publicado, porém, descobri uma solução melhor para duas linhas e lamentei tê-lo enviado tão cedo. Sempre pensei em publicar os poemas, o que ocorreu com muitos, contudo não em livro; porém, a partir de certo momento, e de uma conjuntura favorável na qual a editora Companhia das Letras abria um bom espaço para a produção poética, relendo-os descobri correspondências que antes haviam me passado despercebidas.

 

Patriarcas de uma velha elite decadente, intelectuais “esquisitos”, advogados classe-média e moças de família em fuga dos bons costumes são exemplos da diversidade de personagens que encontramos em sua obra, que no entanto poderia ter um narrador comum, o “sem-teto ocasional” que nos guia por um passeio pelos Jardins, oferecendo um novo olhar à região nobre de São Paulo. Em uma entrevista de 2004 à Folha de S. Paulo, a senhora afirmou que “gostaria de ser uma proletária de dedo em riste”. É esse olhar que molda sua ficção?

Não acho que o “sem-teto ocasional” nos guie para além dos limites do próprio conto. Já a diversidade de personagens que você diz encontrar no que escrevo, indica apenas, a meu ver, a diversidade da existência e minha atenção a ela. Quanto à minha afirmação de que “gostaria de ser uma proletária de dedo em riste”, nem me lembro de tê-la feito, nem de que contexto foi retirada. Assim isoladamente, como me chega, julgo-a uma rematada asneira.

É difícil encontrar autores brasileiros interessados em escrever sobre a elite nacional. O que lhe motivou a transformá-la — ainda que a tratando de forma crítica ou por meio de uma espessa camada de ironia — em personagem de sua Literatura?

Não me julgo particularmente interessada em escrever sobre a elite brasileira. O que foi assim apontado por críticos a partir principalmente dos romances O nome do bispo e Café pequeno, deve-se, assim penso, a um conjunto de fatores que então me interessaram e mostraram-se relacionados a certos estratos sociais os quais conheço bem. Desenvolverei melhor o que pretendo dizer na pergunta a seguir.

Ao mesmo tempo em que encontramos a presença da elite, o extremo oposto também protagoniza várias de suas ficções, bem como fatos históricos — a exemplo da morte de Tancredo Neves em Cortejo em abril — dividem espaço com situações comezinhas em Região. Onde encontra sua matéria ficcional?

Você mesma deu a resposta. Minha matéria ficcional, como a chama, liga-se a fatores de várias natureza e que na ocasião da feitura desta ou daquela ficção vieram, por motivos diversos, a me motivar. Por vezes, o que conheço bem, impõe-se, por outras, o que me é estranho é que me atinge. A realização de uma ficção forma-se de várias percepções. Em um encontro que tive há tempos na casa de Rui Barbosa e que resultou em um livro com pronunciamentos de vários autores, procuro exemplificar o processo da criação de uma ficção, por meio da novela (ou romance, como queira) Joias de família.

É divertida a perplexidade de certos personagens de Região frente a coisas tão cotidianas — quando não pura e simplesmente em relação à vida —, enquanto que certos fatos fantásticos, quase absurdos, são encarados com naturalidade. No seu caso, é o absurdo ou o banal da vida que lhe deixa perplexa? A realidade é maior do que a ficção?

Não endosso propriamente as observações feitas na primeira parte da pergunta, o que prejudica um pouco a questão que me é proposta. A vida oferece aspectos os mais variados, e minha possível perplexidade em relação a ela é a mesma, suponho, que a de qualquer outra pessoa. Estamos na vida, mas dela pouco conhecemos. Por outro lado, a realidade não se opõe à ficção, vindo esta a ser, muito ao contrário, uma forma de se procurar apreendê-la. Talvez o engano se dê porque muitos usam “ficção” como sinônimo de “fictício”, termo que além de significar embuste, o ilusório, etc., também destaca na própria “ficção” alguns desses seus aspectos, conforme o estilo da obra.

A ironia, o fantástico e a abolição do enredo são características dos textos de Região. Elas sempre estiveram presentes em sua escrita ou foram sendo incorporadas a ela? Qual a força da ironia?

O livro Região é composto por três obras, além de dois trabalhos autônomos. Termina porém com um trabalho de não ficção, um pequeno estudo (e apenas aí eu me detenho no conceito do “fantástico”, ainda que reconheça que em certos textos o leitor possa atribuir a alguns dos seus aspectos à categoria). A leitura de todo o material como se ele participasse de uma região “homogênea” é que pode ter suscitado tais questões, o que inclui também a ideia de abolição do enredo. Quanto à ironia, se meu livro a possui, ótimo. Mas não me cabe aqui, assim penso, julgar sua possível existência e, em caso afirmativo, seu peso na composição da escrita.

Tais características podem causar estranhamento, tornar a apreensão de sentido menos óbvia e até mesmo desestabilizar o leitor. Acredita que elas lhe confiram mais reconhecimento da crítica do que popularidade entre leitores? O que espera de seus leitores?

Sinceramente não acho que as características mencionadas possam desestabilizar qualquer leitor (crítico ou não) habituado a livros que vão além da forma naturalista de como deve ser narrada uma história. De meus eventuais leitores, que desconheço quais são, o que poderia esperar? Que continuem meus leitores.

Levando em conta que a Literatura brasileira passa por um período de internacionalização, acredita estar nossa sociedade bem representada por meio dela? Com que Brasil um estrangeiro se depara ao ler nossos contemporâneos?

Não faço a mínima ideia. Mas suponho que um olhar estrangeiro, ao tomar conhecimento da variedade de obras nacionais já traduzidas em diversas línguas, irá se deparar com inúmeros brasis.

O escritor norte-americano Philip Roth, que recentemente anunciou sua aposentadoria, diz que escrever é uma “frustração” e mantém uma nota sobre seu computador em que se lê: “A briga com a escrita acabou”. Concorda com Roth? É possível a um escritor se aposentar?

Em sentido jurídico não sei como anda no Brasil a questão pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) sobre a aposentadoria do escritor, se possui uma legislação em separado, ou corre a par de atividades afins, o que é mais provável. Há anos a UBE (União Brasileira de Escritores) trouxe à baila a questão, porém perdi completamente o contado com a associação, da qual nunca fui muito próxima, assim não sei no que deu. Já no sentido informal que você dá à pergunta, por que não? Vários escritores deixam de escrever sem anunciar o fim de sua atividade. O que Philip Roth faz e com certo aparato. 

Vilma Arêas, em uma entrevista ao jornal Rascunho, afirmou que “a forma escolhida pelo escritor tem a ver com seu temperamento”. A senhora concorda? Apesar de transitar por diversos gêneros, as ficções breves — que a senhora não chega a definir como contos — são parte fundamental de sua obra.

Concordo com Vilma, se é que a entendi bem nesse pequeno destaque, ampliando porém a noção de “temperamento”; pois escrevemos com o que somos, ainda que não exista uma relação simples de causa e efeito no processo.

 

 

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