Com esse número o Pernambuco inicia série de entrevistas com editores. Para começar, uma conversa com o responsável pela Ateliê Editorial e Editora da Universidade de São Paulo
Nas últimas décadas, assistimos a um processo de maturidade e profissionalização do mercado editorial brasileiro. Certamente, duas editoras se tornaram referência neste processo, cada uma em sua área de atuação específica. A primeira é a Edusp (http://www.edusp.com.br/), estruturada da forma como a conhecemos no final dos anos 1980 e que se tornou uma das mais importantes editoras universitárias do país. A segunda é a Ateliê Editorial (http://www.atelie.com.br/), fundada há pouco mais de uma década. Embora com vocações diferentes, ambas têm em comum catálogos de excelente qualidade, que procuram conciliar a edição de clássicos com a publicação de escritores e pesquisas contemporâneos. A valorização do livro enquanto objeto, através de projetos gráficos que resgatam uma espécie de sabor “artesanal”, também é uma marca da atividade destas duas editoras. Isto comprova que investir em conteúdo de qualidade, aliado ao prazer do livro transformado em corpo, é uma das melhores maneiras de resistir ao esquecimento cultural.
Tanto a Ateliê Editorial quanto a Edusp têm em comum o nome de Plínio Martins Filho. Há 39 anos trabalhando com livros, ele é fundador e editor da Ateliê Editorial, bem como editor-presidente da Edusp. Professor de editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP e doutor em editoração pela mesma instituição, Plínio Martins Filho conversou, por e-mail, com o Pernambuco sobre as dificuldades de fazer livros no Brasil, as relações entre o Estado brasileiro e o mercado editorial, a virtualização do livro, entre outros temas.
O senhor dirige duas importantes editoras brasileiras: a Ateliê Editorial e a Edusp. Qual a vocação de uma editora pública? Que papéis ela deve cumprir e de que modo ela se diferencia de editoras privadas?
A vocação de uma editora universitária pública é editar obras que tragam contribuições culturais e científicas, resultados de pesquisas produzidas pela instituição que ela representa, e ao mesmo tempo publicar traduções de livros que tragam contribuição para os estudos universitários.
Enquanto uma editora particular tem como um de seus principais objetivos editar obras que tragam resultados financeiros, na escolha de um livro na editora universitária pública este critério não é levado necessariamente em conta. Numa editora universitária o principal critério deve ser o cultural e não o comercial. Daí que toda editora universitária pública quase sempre é deficitária.
Gostaria que o senhor contasse para os leitores do Pernambuco como surgiu a Ateliê Editorial, bem como um pouco da trajetória da editora nos seus mais de dez anos de existência.
Trabalho com livros há 39 anos. Comecei trabalhando no depósito da editora Perspectiva, que foi a minha escola. Aprendi a gostar de livros com J. Guinsburg e José Mindlin. Vivia falando de livros e muitas pessoas me perguntavam por que eu não criava uma editora. Respondia que sabia quanto custava editar um livro e todas as dificuldades que isso implicava. E eu não tinha nenhum parente rico ou mecenas que financiasse tal empreendimento. Mas um dia, após 25 anos de experiência, li um pequeno livro de um jovem que trabalhava comigo na Edusp (Editora da Universidade de São Paulo), gostei tanto que resolvi começar a Ateliê Editorial com ele. Para isso convidei um aluno que havia estudado cinco anos de medicina e resolveu largar tudo e fazer o curso de editoração. Ele topou.
A sede da editora ficava na garagem de sua casa. O livro era O mistério do leão rampante, de Rodrigo Lacerda. Com ele veio o primeiro Prêmio Jabuti. O segundo livro, Resumo do dia, de Heitor Ferraz, foi finalista do Prêmio Nestlé de Literatura. No quinto livro, uma reedição de Tropicália: Alegoria alegria, de Celso Favaretto, meu sócio, Afonso, comunicou que a editora não era bem o que ele queria e não tive como convencê-lo a ficar. Os livros que estavam em sua garagem, em São Paulo, foram para a sala de minha casa em São Caetano do Sul. Em conversa com minha mulher, Vera, que havia feito letras e belas-artes e tinha experiência em revisão em agência de publicidade e em editora, ela topou dar continuidade ao projeto. Em conversa com nossos dois filhos, expliquei o que era uma editora e disse-lhes que quem ganha dinheiro com editora são os herdeiros e que se eles topassem eu toparia continuar com ela. Concordaram.
Tomás, o mais velho, fez arquitetura na FAU e Gustavo, que até os quinze anos publicara sete livros, fez jornalismo na ECA, ambos na USP. O Tomás, ao se formar, assumiu a produção e a administração da editora junto com a mãe. O Gustavo acha que a editora é muito devagar para seu ritmo. Hoje faz música e se dedica a sua banda Ecos Falsos.
São 15 anos, quase 500 títulos. São 14 prêmios Jabutis. No catálogo da Ateliê Editorial há de tudo um pouco: poesia, ficção, ensaios, arte, música, artes gráficas etc. Meu papel na editora é escolher, aprovar e orientar os projetos.
Sabemos que o Estado brasileiro é um dos maiores compradores de livros do mundo. Como o senhor vê essa forte presença estatal no mercado editorial do nosso país?
O Estado hoje é o principal comprador de livros no Brasil. Como negócio isto é muito bom, principalmente para as grandes editoras. As pequenas dificilmente conseguem colocar algum título nestas listas. As grandes já produzem visando estas vendas, seguindo regras estabelecidas pelo governo. Isso a longo prazo pode ser ruim, principalmente quando se ideologiza, criando regras do que e como se deve escrever. Corre-se o risco de perder algo importante que é a diversidade. Preferia que o governo em qualquer esfera — municipal, estadual ou federal — investisse mais em educação e campanhas que incentivassem o hábito da leitura e as pessoas tivessem o livre-arbítrio para escolher o que gostariam de ler e não receber um “prato feito” oferecido pelo governo. As editoras universitárias públicas e as pequenas editoras exercem o papel de publicar essa diversidade sem se preocupar tanto com as leis de mercado.
Nos últimos anos, observamos que muitas editoras de pequeno e médio porte são incorporadas por editoras maiores. Às vezes, existem dezenas, ou centenas, de selos, na mão de três ou quatro empresas. Qual a sua avaliação disso?
Isto é um fenômeno mundial. Num primeiro momento, os grandes grupos, ao incorporarem as pequenas e médias editoras, prometem manter a linha editorial e seus editores. Alguns anos depois, os editores são substituídos por economistas e marqueteiros. É a ditadura do mercado. Se vende é bom. Se não vende não se edita. Mais uma vez ressalvo o papel das editoras universitárias que ainda resistem à tentação do mercado, apesar do pouco apoio que recebem das instituições que representam.
Embora produzir livros hoje em dia seja razoavelmente barato e exista uma boa mão de obra disponível, percebo que editoras públicas e de pequeno e médio porte sofrem com dois problemas: distribuição e pouco espaço na mídia. Como contornar estes problemas?
A distribuição é de fato o principal problema enfrentado pelas editoras. É um problema estrutural. O Brasil hoje tem mais editoras do que livrarias. Como distribuir bem nessas condições? Quanto ao problema de espaço na mídia nem se fala. As pequenas e médias editoras, em sua maioria, não têm sequer um profissional para fazer este trabalho. Por ser um profissional caro, estas editoras preferem aumentar seu catálogo na esperança de que este um dia permita ter esses profissionais em seus quadros. É impossível disputar estes espaços com as grandes editoras.
Creio que uma solução seria ampliar o número de livrarias e que estas fossem tratadas como espaços culturais com algum incentivo para que, de uma hora para outra, onde havia livraria não se abra mais um boteco.
Na Balada Literária (http://baladaliteraria.zip.net/) deste ano, alguns convidados das mesas de debate afirmaram, com otimismo, que o Brasil está lendo mais. O senhor concorda?
Apesar das pesquisas serem vagas e pouco confiáveis, há sinais de que estamos lendo mais, sim. Não há um dia em São Paulo que não sejam lançados livros. A Edusp vem promovendo há onze anos a Festa do Livro, uma espécie de antibienal onde a condição para a editora participar é ter um catálogo que interesse ao público da Universidade e o desconto mínimo seja de 50%, que todo editor dá para o distribuidor de livros. Em três dias editoras como a Edusp e a Cosac Naify vendem mais de dez mil exemplares de livros. Em três dias! A cada ano as vendas crescem vinte por cento a mais que do ano anterior. Dá para dizer, pelo menos neste caso, que o número de leitores vem crescendo, sim.
Uma das coleções que mais me chama atenção na Ateliê é formada por livros sobre editoração. Como o senhor vê a formação profissional do editor no Brasil? Publicar livros sobre editoração seria uma extensão da sua prática como docente da área?
Sem dúvida é uma extensão da prática não só como docente mas também como editor. O catálogo de uma editora é de alguma forma o retrato de seu editor. Tudo que sou devo ao livro. Quando comecei a trabalhar em editora não havia livros sobre este tema. A formação era puramente empírica. Havia inclusive uma certa prevenção contra os egressos de cursos que tentavam formar pessoas para esta área. Como editor, procuro me valer do meu catálogo para me fazer ouvir. Raramente o editor coloca por escrito ou dá a conhecer o que pensa sobre o meio do qual ele faz parte. O objetivo dessa coleção é procurar resgatar a arte de fazer livros bem feitos, coisa que a parafernália da informática quase destruiu. Apesar das facilidades que a tecnologia nos oferece hoje, nosso ofício exige reflexão, exige contato permanente com o mundo das ideias e com o mundo da tinta, do papel, da consciência social, da economia etc. Insisto em publicar livros para que este ofício dure por muitos séculos, apesar das ameaças...
Do mesmo jeito que ler meia dúzia de livros sobre medicina ou um sobre engenharia não nos capacita a operar ou construir uma ponte, ter muitas facilidades para editar não pressupõe a existência de melhores escritores ou editores. É preciso ter cultura.
A Ateliê Editorial publica duas revistas literárias: a Entretanto e a Sibila. Qual a importância das revistas literárias?
O livro por si só tem dificuldade de sobreviver. As revistas literárias são o espaço para sua discussão e difusão. São fundamentais para a vida dos livros e da literatura. Pena que existam tão poucas e seja tão difícil mantê-las.
Discute-se muito o tema da virtualização do livro. Como o senhor avalia as mudanças na cadeia produtiva do livro relacionadas a este tema? Como a Edusp e a Ateliê Editorial estão lidando com elas?
Vivemos num país no qual ainda não estamos alfabetizados pelos meios tradicionais. Perdemos muito tempo e gastamos muita tinta sobre este tema. O problema central continua sendo a leitura. Se não se inventou algo melhor para se ler do que o nosso bom e velho livro, para mim ficar falando sobre virtualização do texto, sobre e-books, kindle, é uma perda de tempo e, ao mesmo tempo, ficar fazendo propaganda de uma maquininha idiotizante. Sou um homem do livro, livro impresso, e quero continuar sendo. A Internet, a sede da informação imediata e sem reflexão, não me faz falta. Há muitos bons livros a serem lidos e relidos.
Que conselhos daria àqueles que iniciam uma carreira de editoração?
Pense muito antes de entrar neste ramo, que como negócio é o pior do mundo, mas vicia e dá muito prazer. O editor, pessoa responsável pela seleção do que se deve editar, é aquele que graças a seu critério, seus conhecimentos de literatura, do mundo, das pessoas, da vida e dos leitores sabe o que merece ser editado e o que não deve. Nem tudo vale a pena ser editado. Temos que hierarquizar nesse mundo no qual o tempo é cada vez mais escasso. Vale mais a pena se dedicar a algo que seja fruto do talento. Os mais radicais podem dizer que ninguém deve ser árbitro do que se deve publicar. Não se alarmem. Não temam. Bons autores e livros fazem seu caminho. O editor é um filtro que permite que se dê a conhecer aquilo que tem qualidade.
Pense muito antes de querer entrar nesse negócio
- Detalhes
- Categoria: Entrevistas